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Os Hermanos

Sem Apocalipse, Argentina tem seu primeiro dia com lei de casamento entre pessoas do mesmo sexo

A cúpula da Igreja Católica posicionou-se contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo de forma categórica. Nas últimas semanas, o primaz da Argentina, cardeal Jorge Bergoglio, havia convocado uma campanha contra o casamento homossexual. O cardeal definiu sua batalha como uma "Guerra de Deus" contra o projeto de lei, o qual definiu de "movimento do demônio".

Por arielpalacios
Atualização:

O bispo de Río Cuarto, monsenhor Eduardo Martín, sustentou que a lei de casamento homossexual coloca em risco o "futuro da pátria".

Diversos sacerdotes, em todo o país, alertaram para o "iminente Apocalipse", caso a lei fosse aprovada (isto é, o ??????????, pronunciado assim em grego : apokalupsis )

"A criação de Adão", de Michelangelo Buonarroti, o mais famoso afresco da Capela Sistina, pintado em 1511 (a foto mostra a obra antes da restauração de 1980). A emblemática obra, símbolo pictórico supremo do Vaticano,reverenciada por milhões de fiéis que visitam a Santa Sede anualmente, é da autoria de um artista gay. Durante os debates no plenário, o senador Eduardo Torres, a favor do projeto, destacou que os setores do clero que realizaram campanha contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo "deveriam recordar que no Vaticano, o centro do catolicismo, os murais que decoram a Capela Sistina, entre elas 'A criação de Adão', foram realizadas pelo pintor Michelangelo...famoso por ser homossexual!".

O resto dos senadores ausentaram-se da sessão, entre eles, o ex-presidente e atual senador Carlos Menem, outrora um aliado da Igreja Católica.

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PESQUISA - Uma pesquisa elaborada pela consultoria Ipsos Mora y Araujo indicou ontem que 54% dos argentinos respaldam a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Outros 44% estavam contra, enquanto que 2% não contavam com opinião formada sobre o assunto.

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Ontem à noite jornal "La Nación", de tom costumeiramente conservador, fez uma pesquisa entre seus internautas que indicou que 65,12% respaldam a lei que autoriza o casamento de pessoas do mesmo sexo.

Outros 3,22% dos pesquisados sustentaram que o casamento homossexual lhes "gera dúvidas".

Mas, menos de um terço dos pesquisados, 31,66%, declararam que não aceitam o casamento gay.

Durante os debates no plenário, o senador Eduardo Torres, a favor do projeto, destacou com ironia que os setores do clero que realizaram campanha contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo "deveriam recordar que no Vaticano, o centro do catolicismo, os murais que decoram a Capela Sistina, entre elas 'A criação de Adão', foram realizadas pelo pintor Michelangelo...famoso por ser homossexual!".

A senadora Sonia Escudero defendeu o rechaço à lei, argumentando que a família, "constituída por um homem e uma mulher" é a "pedra fundamental" da sociedade.

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FESTAS E INSULTOS - No meio da madrugada, sob uma temperatura de zero grau Celsius, milhares de pessoas vinculadas às ONGs de defesa dos direitos humanos e grupos de militância homossexual celebraram a aprovação segundos após a aprovação da lei no Senado.

A poucos metros dali, três dezenas integrantes de grupos católicos choravam e xingavam os senadores enquanto seguravam imagens da Virgem Maria e rosários.

Os quatro cavaleiros do apocalipse, segundo o genial alemão Albrecht Dürer (1471-1528). Esta obra foi feita entre 1497 e 1498. Está no Staatliche Kunsthalle, da cidade de Karlsruhe, Alemanha.

Dois dias antes da votação - e do eventual fim dos tempos (pelo menos, no território argentino) - o cardeal Jorge Bergoglio, primaz da Argentina, chamou o projeto de lei de "movimento do diabo" contra o qual era preciso declarar "a guerra de Deus". (Bergoglio foi um "papável" que no último conclave no Vaticano ficou em segundo lugar na votação para escolher o novo Sumo Pontífice, ficando atrás de Joseph Ratzinger, que foi eleito papa).

Nas últimas três semanas a Igreja havia mobilizado jovens nas ruas para distribuir folhetos contra o "casamento gay". Além disso, pressionou pais de crianças que estudam em escolas católicas para assinar um abaixo assinado contra o projeto de lei.

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No domingo, nas missas em todo o país, bispos e padres leram uma declaração na qual a Igreja - que tampouco reconhece o casamento civil convencional, aprovado no Parlamento argentino no ano 1888 - sustentou que o casamento deve ser feito somente entre pessoas "heterossexuais".

Juárez Celman, presidente argentino que em 1888 pilotou a campanha para a lei de casamento civil (até então, só valia o casamento religioso). Nos anos seguintes, a Argentina, em vez de sofrer o apocalipse profetizado pelos bispos, viveu pelo menos cinco décadas de prosperidade inédita. Juárez Celman era um aristocrata latifundiário.

Parlamentares que consultei, que conhecem Bergoglio profundamente, me disseram que haviam ficado surpresos com 'a perda das estribeiras' do cardeal, que já havia passado por circunstâncias sociais mais complicadas, como a crise econômica e social de 2001-2002. "Parecia que eram declarações da Idade Média. Não pegou nada bem...no fim das contas, estamos no século XXI. Ele poderia ter utilizado outro tipo de argumentos. Um cardeal da importância dele não pode se comportar como se fosse um pregador de esquina de praça que anuncia que o mundo acaba amanhã...", me explicaram os parlamentares, que apreciam o primaz da Argentina.

DIVISÕES RELIGIOSAS - Na contra-mão da hierarquia católica, diversos padres em dezenas de paróquias do país respaldaram a iniciativa da lei do casamento de pessoas do mesmo sexo. O projeto de lei também provocou divergências entre pastores de igrejas evangélicas e entre rabinos da comunidade judaica.

O debate sobre o casamento entre homossexuais gerou a maior discussão na sociedade argentina desde a votação da lei do divórcio em 1987.

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No entanto, os casais deverão esperar algumas semanas, já que a regulamentação da lei ocorrerá na quarta-feira da semana que vem. E, os primeiros casamentos poderiam ser realizados a partir do dia 13 de agosto.

Mas, no interior do país, alguns juízes começam a indicar que poderiam recusar-se a seguir a nova lei.

Esse é o caso de Marta Covella, juíza de paz da cidade de General Pico, de ... mil habitantes, na província de La Pampa, que anunciou sua recusa categórica a realizar tal tipo de casamento, já que Deus lhe "disse" que não deve casar homossexuais.

"Podem me acusar do que quiserem! Deus me diz uma coisa e eu vou obedecer à risca, mesmo que isso me custe o posto e mesmo que isso me custe a vida". Segundo a juíza, acima da lei argentina, "em primeiro lugar está aquilo que Deus" lhe disse.

A juíza também sustentou que Deus "não aprova as coisas más que as pessoas fazem. E uma relação entre homossexuais é uma coisa ruim perante os olhos de Deus". Segundo a juíza, "para Deus os cinzas não existem. Para Deus, as coisas são brancas ou negras. E isto é negro".

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Para resolver o caso em General Pico, quando a juiza Covella fique perante a situação de um casamento homossexual, ela será substituída por uma juíza suplente.

Os ateus constituem um grupo em crescimento no país. Um censo realizado em 1960 mostrou que eles representavam 1,7% da população. Mas, no ano passado uma pesquisa do Instituto Nacional de Estatísticas e Censos (Indec) indicou que os ateus equivalem a 11,3%. 

A pesquisa também afirmou que os católicos são maioria, já que representam 76,5% da população. Mas, eles constituem uma maioria puramente formal, pois os católicos praticantes representam menos de 10% do total.

Enquanto isso, a totalidade das igrejas evangélicas na Argentina não reúne mais de 10% da população. Mas, ao contrário dos católicos, o grupo evangélico é totalmente praticante.

O país conta com a maior comunidade judaica da América Latina - calculada entre 300 mil e 500 mil pessoas - além de uma presença muçulmana (estimada em 500 mil pessoas) nas províncias do norte e noroeste.

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SEM 'VADE RETRO' - No final de 2008 foi realizado no balneário de Mar del Plata o Primeiro Congresso Nacional de Ateísmo. O encontro debateu sobre Direito Penal, o pecado e a liberdade de pensamento. Segundo os organizadores, para mostrar que não dizem "Vade Retro" a pessoa alguma, foram convidados sacerdotes de várias religiões.

Andrea e Silvina, juntas há quase duas décadas 

"NOS AMAMOS E ESTAMOS JUNTAS HÁ 18 ANOS ININTERRUPTOS"

Andrea Majul e Silvina Maddaleno conheceram-se há 18 anos. Apaixonaram-se. Depois de dois anos de namoro, foram morar juntas. A relação, que persistiu ao longo desse tempo, passou a incluir desde 2007 três crianças - Abril, Jazmín e Santiago -  graças a inseminação artificial de Silvina. A relação entre ambas foi oficializada pela união civil no ano passado. Em sua casa no bairro de Almagro, Silvina e Andrea, na companhia dos trigêmeos, conversaram com o Estado sobre as novas perspectivas a partir da lei de casamento de pessoas do mesmo sexo.

Estado - Diversos setores da sociedade argentina argumentam que os casais homossexuais não são duradouros, e portanto, não poderiam ser equiparados a casais heterossexuais...

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Silvina - É impresionante que digam essas coisas! Ora, nós nos amamos e estamos juntas há 18 anos, e fizemos a união civil no ano passado. Nesse intervalo vi muitos casais heterossexuais naufragarem. E muitos casais darem certo, também. Temos três crianças, as quais criamos e damos todo o amor do mundo. E trabalhamos duro para criar as crianças, pois não temos subsídios de ninguém.

Andrea - Nas sessões do Parlamento, quando as comissões analisavam o projeto de lei, um rapaz da Agência Informativa Católica disse assim: 'como todos sabem, os casais gays não duram muito tempo, e por isso, não podem fornecer estabilidade para as crianças'. Ora, isso foi totalmente discriminatório! E no meio dessas sessões apareceu Gustavo Breide Obeid, um ex-militar que participou das rebeliões carapintadas nos anos 80, que disse que a homossexualidade era comparável "à zoofilia e outras doenças". Fiquei abismada. Parecia coisa da Idade Média!

Estado - Como é criar filhos com "duas mães"? É diferente do casal "convencional" de pai e mãe?

Silvina - Nossos filhos sabem que possuem duas mães. E sabem que alguns de seus amiguinhos no Jardim de Infância têm um pai e uma mãe. E que outros dos coleguinhas possuem apenas uma mãe. Ou apenas um pai.

Estado - Legalmente, até a aprovação da lei, só Silvina era mãe destas crianças. Você, Andrea, não existia perante a lei para os trigêmeos...

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Andrea - Para a lei argentina, até a aprovação da nova norma, minha esposa, Silvina, era uma mãe solteira. Até esta madrugada, para a Justiça eu, se ajudava a criar as crianças, não passava de uma 'cortesia' minha. Isso era assim, mesmo que eu estivesse presente, ajudando e participando desde antes do nascimento das crianças e até minha morte. E destaco até minha morte, pois elas não poderiam ser herdeiras minhas. Ou seja, antes da lei, se eu morria, não poderiam herdar meus bens, pois não podia oficialmente me casar com a Silvina. Eles não poderiam contar com meu plano de saúde. E tampouco eu poderia tomar uma licença do trabalho caso eles ficassem doentes. Se minha esposa, Silvina, morrer, as crianças não estariam somente perdendo uma mãe..elas perderiam duas mães, já que passariam a ser consideradas órfãs perante a lei! Nossas crianças ficariam desprotegidas, pois existia um vácuo jurídico.

Estado - A partir de agora surge uma nova estrutura familiar, mais ampla?

Silvina - (rindo) Quem casar com nossos filhos terá duas sogras! (riem as duas, juntas)

Santiago, Jazmín e Abril vestidos com o uniforme típico dos jardins de infância portenhos

DADOS BÁSICOS SOBRE AS MUDANÇAS COM A LEI DE CASAMENTO DE PESSOAS DO MESMO SEXO

- Herança do cônjuge: Antes da lei, se um dos cônjuges falecia, o outro ficava sem receber herança. O caso só podia ser contornado por meio de documentação de uma doação (e mesmo assim, não podia receber os 100% dos bens, tendo chance de conseguir, no máximo, 30% dos bens). A lei anterior não o considerava nem parente nem cônjuge, e portanto, nada recebia.

Na nova conjuntura, o cônjuge viúvo pode receber a herança totalmente, tal como nos casais heterossexuais (no caso de ausência de outros herdeiros). 

- Adoção de crianças: antes da lei de casamento de pessoas do mesmo sexo, somente um dos integrantes do casal homossexual podia legalmente adotar. Isto é, ambas pessoas do casal não podiam adotar em conjunto as crianças.

A partir da nova lei, ambos integrantes do casal poderão registrar as crianças adotadas como sendo filhos de ambos.

- Sobrenome das crianças: As crianças adotadas, conseguidas por meio de inseminação artificial ou filhas diretas de um dos cônjuges poderá ostentar o nome dos dois pais ou das duas mães. 

- Impostos, créditos e pensões: Antes da lei, as pessoas do mesmo sexo que viviam juntas não podiam pagar impostos como casal sequer pedir créditos em conjunto ou receber pensões. Com a nova lei, passam a ter direitos totais nesses casos, tais como os casais heterossexuais. A nova lei também permite que o cônjuge homossexual receba direitos dentro do plano de saúde do outro.

 

Em 2009 "Os Hermanos" recebeu o prêmio de melhor blog do Estadão (prêmio compartilhado com o blogueiro Gustavo Chacra).

Gustavo Chacra (Nova York): http://blogs.estadao.com.br/gustavo-chacra/ 

Patricia Campos Mello (Washington) - http://blogs.estadao.com.br/patricia-campos-mello/ 

Claudia Trevisan (Pequim) - http://blogs.estadao.com.br/claudia-trevisan/ 

Adriana Carranca (Pelo Mundo) - http://blogs.estadao.com.br/adriana-carranca/ 

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