O Bitcoin e a grande ilusão do dinheiro

'Há certa elegância teórica na ideia de uma moeda sem fronteiras, mas o futuro do Bitcoin esbarra em dois problemas básicos'

PUBLICIDADE

Por Redação Link
Atualização:

‘Há certa elegância teórica na ideia de uma moeda sem fronteiras, mas o futuro do Bitcoin esbarra em dois problemas básicos’

PUBLICIDADE

Neil Irwin*WASHINGTON POST

WASHINGTON – Houve uma ótima tirada no site de notícias falsas The Onion alguns anos atrás em que ela “noticiava” que o presidente do Fed (o banco central americano) Ben Bernanke teve um momento de pânico existencial durante uma audiência no Congresso quando parou, abanou a cabeça e disse: “É apenas um a ilusão. Olhem para isto: pedaços de papel sem sentido com números pintados sobre eles. Imprestáveis.” Dizia a manchete de Onion: “Economia americana se paralisa enquanto a nação percebe que o dinheiro não passa de uma ilusão simbólica mutuamente compartilhada.” O que nos traz ao Bitcoin.

—- • Siga o ‘Link’ no Twitter, no Facebook, no Google+ no Tumblr e no Instagram

O Bitcoin é uma moeda digital que uma certa variedade de futuristas tecno-utópicos vê como uma forma de dinheiro não onerada pelas leis internacionais para conter a lavagem de dinheiro que afetam a privacidade e por bancos centrais tolerantes com a inflação. Seu valor esteve extraordinariamente volátil nas últimas semanas, subindo de US$ 20, há cerca de dois meses, para mais de US$ 250, e em seguida descendo para cerca de US$ 60 no dia 12, com duas interrupções de câmbio nesse intervalo.

O Bitcoin é um mercado minúsculo no esquema geral da coisas e suas oscilações recentes indicam que o dólar, o euro e o iene não têm nada a temer de sua competição. Se uma moeda pode perder 75% de seu poder de compra em dois dias, ela não pode ser a melhor reserva de valor. Mas ela é também uma janela importante para o estranho e desconfortável mistério de “O que é o dinheiro?”, uma pergunta mais difícil de responder do que se poderia pensar.

Podemos concordar que as notas de dólar em minha carteira são dinheiro, assim como os centavos no cofrinho de minha cômoda. O mesmo ocorre com os fundos depositados em minha conta corrente. O investimento que tenho num fundo mútuo no mercado monetário provavelmente também se inclui; afinal, posso preencher um cheque daquela conta e usá-lo para comprar coisas. Ouro não é dinheiro, mas pode ser facilmente negociado por dinheiro, de modo que pode ser um substituo razoável dele. Minha geladeira decididamente não é dinheiro. Embora tenha valor, seria muito mais difícil convertê-la em dinheiro do que o ouro se eu ficasse necessitado.

Publicidade

O fio condutor aqui é que o dinheiro não tem quase nada a ver com forma física. Tampouco tem muito a ver com quem o cria: as notas de dólar foram emitidas pelo Banco Central, a conta bancária foi criada por meu banco, o fundo do mercado monetário foi criado por um gestor de fundo mútuo, o ouro foi retirado da terra, e a geladeira foi fabricada pela General Electric.

O que faz dinheiro é o que se pode fazer com ele. Se pudermos comprar bens e serviços com ele, é dinheiro; se não pudermos, não é. Dinheiro é memória, disse Narayana Kocherlaoka num importante estudo de 1996 (ele hoje preside o banco central de Minneapolis). É a maneira como nós como sociedade registramos quanta capacidade de comprar cada um de nós possui. Em outras palavras, The Onion estava certo. O dinheiro realmente não passa de uma ilusão simbólica mutuamente partilhada.

Essa realidade tem implicações importantes para todos os debates monetários que hoje cativam as pessoas, de David Stockman avaliando 80 anos de política econômica à preocupação sobre se o Banco do Japão libertará algum perigoso gênio da inflação com seu novo surto de atividade, à questão da permanência ou não da zona do euro.

Uma vez aceita a ideia de que o dinheiro é, de fato, mais uma ideia do que uma coisa, fica mais claro que não há uma maneira única “correta” de gerir um sistema monetário. Trata-se meramente de tentar imaginar, por julgamento e erro (e a humanidade tem errado um bocado ao longo da História), qual sistema funciona melhor.

CONTiNUA APÓS PUBLICIDADE

Algumas sociedades, incluindo esta até 1933, atrelaram rigidamente o valor de seu dinheiro ao ouro ou a outros metais preciosos. Isso traz algumas vantagens, mais especialmente, que um governo não pode criar mais dinheiro do nada e com isso permitir o crescimento da inflação.

Mas traz alguns inconvenientes importantes também. Para começar, o governo pode não ser capaz de criar ouro novo do nada, mas mineiros podem definitivamente retirá-lo do solo. E temos uma situação curiosa quando o nível de preço de toda uma sociedade pode flutuar com base em avanços na tecnologia de mineração ou a descoberta ou não descoberta de novas reservas.

Em vez disso, todas as nações avançadas dos tempos modernos têm um banco central encarregado de emitir dinheiro. A lógica é que, em vez de atar o valor do dinheiro a algum material, encarregar alguns economistas sóbrios e politicamente independentes e conferir-lhes alguma meta. Na prática, muitos países fizeram essa meta “gerir a oferta de dinheiro para que os preços subam cerca de 2% ao ano. Nem mais, nem menos”. Como essas instituições estão imbuídas do poder do Estado, o dinheiro que emitem tem a credibilidade do governo inteiro por trás delas.

Publicidade

Como escreveu Joe Weisenthal para Business Insider: “O dólar americano não é importante apenas porque as pessoas pensam que ele é. O dólar americano é importante porque é a entidade mais forte do mundo, com a plena força do Exército, do FBI, da CIA, da NSA e de várias autoridades locais armadas dos Estados Unidos, e exige que você lhe pague em dólares americanos. Não é a fé. É a lei.”

Então, por que alguém desejaria inventar Bitcoins? Há certa elegância teórica na ideia de uma moeda sem fronteiras, com sua oferta limitada pela dificuldade de resolver problemas matemáticos muito complexos. Mas voltando ao ponto inicial o dinheiro é útil porque pode ser usado para comprar coisas. E duas coisas maciças obstruem o caminho para o Bitcoin se tornar algo mais que uma curiosidade monetária.

Ironicamente, ambas são subprodutos das coisas que entusiastas do Bitcoin mais apreciam. Primeiro, como ele não tem o endosso de nenhum governo, jamais poderá ser usado em transações oficiais. Se você for americano, acabará tendo de pagar seus impostos, o que significa apossar-se de alguns dólares que será a moeda em ocorrerá a maioria esmagadora das transações americanas.

Segundo, o teto da oferta de Bitcoins pode tranquilizar as pessoas de que não haverá inflação, mas na verdade assegura que eles jamais poderão ter um de uso generalizado. Uma moeda precisa ser elástica – isto é, sua oferta precisa crescer e decrescer para manter a estabilidade dos preços mesmo que a demanda por dinheiro das pessoas varie. Parte da razão porque o Federal Reserve (o banco central americano) foi criado, um século atrás, é que o dólar era na época uma moeda inelástica, sua oferta era basicamente fixada com base em quanto ouro os bancos tinham em seus cofres. Isso significava que, quando chegava a temporada da colheita no que era então uma nação pesadamente agrícola, havia sempre uma escassez de caixa e uma alta nas taxas de juros, e, em alguns anos, um pânico bancário.

O Bitcoin exacerba esse problema. Sua oferta é limitada no longo prazo. Isso significa que, se ele entrar em uso generalizado, a demanda por Bitcoins poderá crescer mais rapidamente que a oferta (que foi o que ocorreu entre fevereiro e o começo desta semana), e o preço subirá rapidamente. Isso pode parecer bom – seu dinheiro vale mais! –, mas na verdade significa que os preços de bens e serviços estão despencando.

Isso é deflação, que, como a Grande Depressão nos mostrou, não é muito divertida. É uma situação em que as pessoas têm todo incentivo para guardar dinheiro em vez de gastá-lo, provocando uma paralisação gradual do comércio.

Aliás, o Bitcoin é um lembrete desta verdade fundamental: para funcionar numa economia moderna, você está sempre depositando sua fé em algo, quer goste ou não. E pode não gostar de depositar essa fé num banco central independente e poderoso imbuído do poder do Estado, mas as alternativas podem ser bem piores.

Publicidade

/ Tradução de Celso Paciornik

* Neil Irwin é colunista de Economia do jornal ‘Washington Post’ e autor do livro ’The Alchemists: Three Central Bankers and a World on Fire’

—-Leia mais:• Bitcoin ultrapassa a marca de US$ 200• Gêmeos do Facebook viram magnatas do bitcoin • Em busca de uma moeda única para a internet • Lastro em bitsEntenda como funciona o Bitcoin

Tudo Sobre
Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.