'Marco Civil se esquece da solidariedade'

Marcelo Thompson, professor de tecnologia e direito em Hong Kong, critica mudanças no texto do Marco Civil

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Por Tatiana Mello Dias
Atualização:

Chegou ao fim neste domingo a consulta pública que dará origem ao Marco Civil da Internet. Foram meses de coletas de opiniões de internautas, várias boas sugestões e uma única grande modificação: o artigo 20, que trata do mecanismo de notificação e retirada e responsabilidade dos provedores. Na primeira redação do projeto, ficou estabelecido um mecanismo extrajudicial de remoção de conteúdo – mas, depois de muita polêmica (e a argumentação de que o mecanismo poderia prejudicar a liberdade de expressão), o Ministério mudou a redação do artigo.

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A mudança veio a contragosto – os responsáveis pela Secretaria de Assuntos Legislativos já confirmaram que não se sabe ainda como ficará o texto final. Mesmo depois de todo o barulho, ainda há vozes que defendem o mecanismo de notificação e retirada proposto pelo Ministério — e uma delas veio lá de Hong Kong. Marcelo Thompson é brasileiro, fez mestrado na área direitos humanos e acesso ao conhecimento no Canadá e hoje é doutorando em informação, comunicação e ciências sociais na Universidade de Oxford, além de ser diretor-adjunto do Centro de Direito e Tecnologia da Universidade de Hong Kong, onde vive.

Para Thompson, a isenção da responsabilidade dos provedores – proposta após a mudança no artigo 20, que define que o conteúdo só pode ser removido após decisão judicial – é um problema sério na defesa dos direitos humanos. O Link conversou com ele sobre o tema:

O Marco surgiu para defender a liberdade, mas você diz que a concepção de liberdade do texto é ‘individualista’. Por quê? Bom, primeiro: só para você não pensar que a minha opinião é só oposta, eu vejo o Marco em geral de uma forma positiva. Eu acho que ele quer abraçar uma visão da internet que faça jus a como ela foi concebida: como uma rede aberta a uma participação positiva de todos e uma ferramenta democrática. O Marco quer ajudar os tribunais, os governantes e a sociedade a entender o que é internet, os princípios, os direitos. Quer controlar o poder exercido na internet e estabelecer um sistema de pesos e contapesos para governos e provedores de conexão e serviços. Ao definir deveres e responsabilidades daqueles que exercem o poder, o Marco quer favorecer o indivíduo. A minha grande crítica é em relação às concepções de liberdades que o Marco Civil adota – essas, como estão colocadas no texto atual, são concepções individualistas.

Como assim? O Marco Civil inverte o princípio liberal e cria um amplo sistema de neutralidade. Ele neutraliza a capacidade de determinados atores da internet – atores muito relevantes – a escolherem as suas razões pra ação. Provedores de serviços, conexões e governos têm as suas capacidades de valorar neutralizadas. Por exemplo, o YouTube: mesmo quando tomam conhecimento da legalidade, eles não têm a obrigação legal de remover esse conteúdo.

Mas, quando maiores os benefícios sociais, poderia-se exigir uma atuação não neutra desses atores. A lei torna improvável que esses atores raciocinem, e faz isso para proteger uma concepção antissocial do indivíduo que não admite qualquer restrição a suas possibilidades de acesso, de expressão e de utilização de novas tecnologias. Eu acho que o Marco Civil pensa na liberdade e se esquece da solidariedade. Restringe a forma como atores muito relevantes poderiam agir com algum grau de liberdade, mesmo em proteção aos valores sociais, e pensa apenas nos indivíduos que querem se expressar.

A nuvem de tags dos assuntos discutidos na consulta pública Foto: Estadão

Você acha que faltou especificar maiores responsabilidades para os provedores de conteúdo? Sim. Eu acho que o sistema anterior estabelecia um mecanismo de diálogo entre o ofendido e o ofensor. Embora esse mecanismo precisasse ser aperfeiçoado, ele evitava o sistema de complacência com o horror que o novo sistema proporciona. O sistema transforma a cessação do ilícito em uma faculdade do provedor de serivços. Ele faz com que mesmo as violações mais grotescas de direitos humanos não possam ser coibidas senão por vontade do provedor. Você tem vítimas de ciberbullyng ou de violações de privacidade das mais sérias, e não existe nenhum mecanismo para fazer esse conteúdo sair imediatamente do ar senão achando um advogado e expondo todas suas mazelas chagas na Justiça, enquanto a internet vai eternizando os danos.

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A velocidade desses processos de linchamento coletivo é brutal. Aqui na China se chama ‘motores de busca de carne humana’. Quando esses processos começam, nada os faz parar. Como foi no caso da Daniela Cicarelli: ela ganhou na Justiça, mas não levou. O direito, aqui, é impotente. E as pessoas que não concordam, que acham que a internet é um lugar pra punição popular, autotutela, vêem no Marco Civil uma oportunidade única para fazerem valer seus interesses pessoais em um sistema individualista de liberdades que não é o adotado pela nossa Constiuição. Não é suficiente que os provedores possam remover conteúdo danoso. Eles têm que ter o dever de remover esse conteúdo.

Tem alguma legislação que você considera o exemplo ideal no mundo? Eu acho que um exemplo interessante é a diretiva da União Européia. A diretiva harmoniza toda a legislação e todos os estados membros da União Européia têm que incorporar. Isso influencia a maneira como os diferentes membros farão suas leis. O artigo 14, sobre comércio eletrônico, diz que a partir do momento que o prestador tem consciência da ilicitude de um conteúdo, ele deve retirar ou impossibilitar o acesso a essas infomações. Quando tem conhecimehnto, ele deve agir o mais rápido possível. A redação anterior do Marco Civil era interessante porque ela também trazia a possibildiade de um diálogo entre os dois lados do processo. Entre aquele que era o ofensor, que praticava o ato, e a vítima desse ato ilícito.

O que havia de errado no modelo anterior? Ele não fazia distinção entre questões meramente patrimoniais e questões relativas a direitos da personalidade. A gente tem direitos de autor de um lado, que são em grande parte patrimoniais (são explorados por detentores de direitos), e de outro lado temos a liberdade de expressão. O problema da redação anterior era que o detentor de direitos patrimoniais notificava uma pessoa que colocava um vídeo no YouTube e um vídeo era removido imediatamente. Então você dava prevalência de um direito patrimonial em detrimento da liberdade de expressão, e não especificava o prazo em que isso seria feito.

Mas, no caso dos direitos de personalidade, o Marco estava certo em preservar. Cyberbulling, direitos da criança, esses sim eu acho deveriam sair do ar imediatamente. Acho que o provedor de serviços devia ter algum dever em apreciar essas notificações e verificar, ainda que em caráter superficial, o mérito delas. Deve haver algum incentivo para que o provedor de serviços raciocine sobre a natureza desses serviços.

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O que você achou do sistema de consulta? Eu acho que o processo está acontecendo de forma democrática, é bonito ver isso. Mas o único caso de modificação foi esse, o do artigo 20. As modificações foram feitas após críticas promovidas em oportunidades distintas pela mídia, alcançando uma dimensão muito grande. Há inúmeros outros em que existem críticas dos usuarios, e nenhum deles foi modificado.

Você acha que o Brasil está avançando nessas discussões em âmbito mundial? Olha, eu acho que o pessoal do Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV-RJ está fazendo um trabalho maravilhoso, eu diria que está ao nível dos melhores centros do mundo. O pessoal é muito respeitado. E acho que o Marco Civil, a forma como esse processo está acontecendo, é algo sem precedentes. É um processo democrático, aberto a participação. Eu tenho críticas à forma como o artigo 20 foi modificado, mas acho que é um processo que deve ser observado com carinho pela comunidade internacional. Acho que outros países devem seguir um modelo semelhante. Não vejo nada que tenha acontecido dessa forma em outros países, em termo de conteúdo e independencia. Acho que o processo tem sido formidável.

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