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Cultura, comportamento, noite e gente em São Paulo

'A Lei da Anistia é uma virada de página. Não há mais como mudá-la'

Por Sonia Racy
Atualização:

 Foto: Divulgação

Para o ministro do STF, mexer no assunto para punir torturadores - como querem integrantes da Comissão da Verdade - é impensável nas atuais regras constitucionais.

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Polêmico, experiente, provocador, o ministro Marco Aurélio Mello, 35 anos de mundo judiciário, 24 deles no Supremo Tribunal Federal, não tem medo de desagradar. Às vésperas da entrega do relatório final da Comissão Nacional da Verdade à presidente Dilma Rousseff - na quarta-feira, em Brasília - ele avisa: a Lei de Anistia, cuja reavaliação deverá ser pedida no texto, "é uma página virada da história". Mais que isso: "Tecnicamente, não vejo qualquer fórmula ou instrumento para se chegar a essa revisão. A decisão do Supremo foi definitiva - e não há como vislumbrar uma virada de mesa". Ao comentar as prisões domiciliares autorizadas para alguns réus do mensalão, ele aponta o dedo para um "pecadilho" que teria sido cometido em 2012 pelo então presidente do STF, Joaquim Barbosa, ao definir as punições. "O relator (Barbosa), que era tido como muito rigoroso - e talvez não seja bem assim - em matéria penal, poderia ter preconizado o regime fechado para início do cumprimento da pena, deixando para depois a progressão para o semiaberto." Esse "descuido", em seu entender, abriu a brecha para seguidos benefícios dados a alguns réus, gerando decepção na sociedade. Nesta entrevista à coluna, Mello também cobra de outro colega, Antonio Dias Toffoli, a afirmação - dada há um mês, no Programa do Jô, da TV Globo - de que haveria "ministros arrependidos" por terem votado pelo fim da cláusula de barreira para partidos políticos. A seguir, os trechos mais importantes da conversa.

Na quarta-feira, a Comissão Nacional da Verdade vai sugerir ao governo - em relatório final de seu trabalho - que seja reavaliada a Lei da Anistia. Acredita que essa lei pode ser mudada? O tribunal já enfrentou uma articulação de inconstitucionalidade da Lei da Anistia. E, por uma maioria expressiva, apoiou a posição do relator, ministro Eros Grau, que manteve o texto. É um ministro insuspeito. No passado, atuou em movimentos contrários ao regime de exceção. Eu somei meu voto ao dele. E entendo que a Lei da Anistia é uma página virada. É um perdão em sentido maior.

Mas ela é rejeitada pelos que não admitem perdoar torturadores. Na época, ela foi negociada como instrumento de passagem do regime de exceção para a democracia. E se mostrou bilateral. Beneficiava não só os que combateram o aparelho repressor como aqueles que nele atuavam. Nós precisamos cuidar do futuro, não do passado. Vamos buscar melhores dias para o Brasil. Que venham esses melhores dias para os nossos netos. Creio que não interessa à sociedade brasileira nem à paz social o reexame do tema. Além disso, tecnicamente, eu não vejo qualquer instrumento para se chegar a essa revisão - foi uma decisão definitiva. E não há como nem sequer vislumbrar uma virada de mesa, que equivaleria a rasgar-se a Constituição Federal.

Em suma, não cabe o pedido para se reavaliar a questão? Não, não cabe. E eu não sei quem entraria com tal pedido nem qual seria o instrumento processual viabilizador desse reexame. E digo mais: sob o ângulo da oportunidade, a revisão não interessa à sociedade.

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O Brasil é signatário de acordos internacionais que definem o crime de tortura como imprescritível. Para alguns juristas, o País teria obrigação de se adequar a essa norma. Como fazer? Nós temos como fundamento da República a autodeterminação dos povos. E de duas uma: ou o instrumento internacional passou pelo crivo que é o crivo próprio das emendas constitucionais, e assim ganhou envergadura constitucional, ou não passou. E, evidentemente, não se pode colocar um instrumento internacional num patamar acima da nossa própria Lei Magna. Claro que há um compromisso de se observar os pactos internacionais ratificados pelo País. Mas isso não leva a que simplesmente se abandone a Constituição, o ordenamento jurídico interno, para se dar prevalência a esse pacto.

Depois dos meses agitados do mensalão, em 2013, o STF viveu sessões mais calmas em 2014. Qual a comparação que o senhor faz entre os dois momentos? O Supremo tem uma competência muito alargada, que resulta em uma inimaginável sobrecarga de processos. Cada integrante da corte recebeu em média, por semana, 150 processos. Isso é incompreensível. E ficamos nessa angústia de conciliar celeridade com conteúdo. Logicamente, se tivermos de sacrificar alguma coisa, vamos sacrificar a celeridade.

Mas aí as ações se acumulam, a Justiça é adiada. Hoje nós estamos deslanchando. Transferimos trabalho para as turmas. Assim pudemos, no plenário, avançar, julgando recursos extraordinários sob o ângulo da repercussão geral e destravando a jurisdição, já que, nas bases dos tribunais do País, há um grande número de processos aguardando o pronunciamento do Supremo. Creio que atravessamos uma quadra promissora.

Que imagem deixou para a sociedade, a seu ver, o longo processo do mensalão? Revelar à sociedade que a lei vale para todos. Pois todos, indistintamente, se submetem ao arcabouço normativo da nossa ordem jurídica. Mas o espantoso é que, no julgamento dessa ação, imaginamos estar diante de um grande escândalo... Ledo engano! Agora temos aí a operação Lava Jato - que faz da anterior uma ação que talvez nem precisasse ser julgada pelo Supremo, bastaria um juizado de pequenas causas...

E os últimos depoimentos sugerem que a Lava Jato pode envolver pelo menos de 30 a 40 políticos. Eles teriam foro privilegiado e o STF teria pela frente outro enorme processo. Esse número de possíveis envolvidos, de fato, nos estarrece. É sinal de que estamos muito mal em termos de políticos e em termos de ocupação de cargos públicos. Porque - pelo que se vê - o cargo público é ocupado, por aquele que o tem, para servir ao público, não para se servir dele, deturpando a administração.

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Há na sociedade uma certa decepção por se constatar que, beneficiados por uma série de cláusulas legais, alguns condenados do núcleo político do mensalão já estão em regime semiaberto e prisão domiciliar. Já se disse até que alguns deles poderiam, com o indulto de Natal, ter liberdade definitiva. A lei está correta? Para dizer com rigor, houve um pecadilho, no julgamento, quanto à imposição do regime de cumprimento das penas. O que tivemos? O relator, que era tido - já que não está mais na função - como muito rigoroso, e talvez não seja bem assim, em matéria penal, ao invés de preconizar o regime fechado para início do cumprimento da pena, determinando para depois a progressão para o regime semiaberto, e a seguir o regime aberto, já propôs de início o regime semiaberto. E colocando em segundo plano o Código Penal, no que revela que, sendo as circunstâncias judiciais - ou seja, ligadas à pratica criminosa - negativas, como foram as circunstâncias judiciais, já que as penas bases ficaram acima do previsto para os crimes praticados, ele simplesmente preconizou o abrandamento do regime. O revisor o acompanhou e nós, que não examinamos o processo, como foi examinado pelo relator e pelo revisor, .... mais realista do que os dois reis. E assim acompanhamos relator e revisor.

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Houve divergências, também, sobre o direito ao trabalho externo dos condenados... Sim, por isso é que tivemos imediatamente aquela celeuma sobre se poderiam ou não trabalhar externamente, com recolhimento à noite, e a passagem quase que imediata ao regime aberto - dando essa sensação de impunidade à sociedade. O sistema talvez precise ser revisto pelo tribunal.

Em que sentido? Para endurecermos o sistema em termos de normatividade, precisamos também cuidar das nossas penitenciárias, já que a Constituição impõe ao Estado preservar a dignidade física e moral do preso. E o preso é um educando. Evidentemente, não tem a reeducação nas penitenciárias brasileiras. Esta aí o exemplo concreto, com o que se decidiu recentemente na Itália.

O senhor se refere à decisão de não extraditar para o Brasil o réu Henrique Pizzolato? Exatamente. O fato é que o Estado precisa se aparelhar para observar as garantias profissionais. E parece que há um descuido, e reiterado, quanto a essa necessidade.

Em 2015, haverá fortes pressões por uma reforma política. É assunto para o Legislativo, primordialmente. O Supremo deve ter um papel nessa discussão? O Supremo age de forma vinculada - digo, vinculada ao direito posto. Mas não pode substituir-se ao Congresso, fazer as vezes dele. Há um princípio que venho invocando em plenário, cujo cumprimento me parece necessário para continuarmos em um regime democrático e republicano - o da autocontenção. Quando se deixa de observar a existência de outros poderes, temos um bumerangue que pode retornar - e aí a coisa vira uma verdadeira Babel. Não cabe ao Judiciário implementar a reforma política, que depende, essencialmente, das duas casas do Congresso. Mas o Supremo interpreta a norma com a qual se defronta, e a interpretação é um ato de vontade. Se a norma viabiliza avançar, o Supremo avança. E deve avançar, inclusive implementando uma mutação sem alteração do texto. Mas uma mutação da Constituição, que a todos, indistintamente - inclusive ao Supremo -, submete.

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Em 2009, o STF derrubou a cláusula de barreira - entendeu-se que ela prejudicava os pequenos partidos. Muita gente diz que essa decisão foi equivocada, pois a cláusula era necessária. Qual sua avaliação, hoje, sobre isso? Eu fui o relator dessa ação direta de inconstitucionalidade. E a decisão foi a uma só voz. Não houve qualquer divergência. Há algumas semanas, assisti a uma entrevista no Programa do Jô, na TV Globo, na qual falava o ministro Dias Toffoli. Fiquei surpreso ao vê-lo afirmar que alguns integrantes do Supremo - note-se que vários dos que compunham a corte naquela época já estão aposentados - teriam se arrependido da decisão. Eu, na minha vida judicante, nunca me arrependi de qualquer voto. Posso ter errado, porque não sou nenhum semideus, mas jamais me arrependi. E tomei a liberdade, em um cartão, num tom assim coloquial, de reapresentar ao ministro Toffoli o substancioso acórdão que foi redigido na ocasião, com a discussão profunda e detalhada da matéria.

O ministro respondeu? Reavaliou o que havia dito? Ele não tocou no assunto comigo. Mas repito que fiquei pasmado quando ele falou em arrependimento. E pude afirmar que, de minha parte, não houve arrependimento nenhum. Mas acho importante lembrar que se paga um preço por se viver em um Estado de direito, e esse preço é módico. Está ao alcance de qualquer um, ao alcance, principalmente, dos integrantes do Supremo, que é o respeito irrestrito ao arcabouço normativo constitucional. E quando nós derrubamos a denominada cláusula de barreira, o que fizemos foi tornar prevalecente a lei das leis, a Constituição. Temos de decidir, em direito, se o meio justifica os fins, ou os fins é que justificam os meios. Conforme a escolha, nos arriscamos a partir para o justiçamento. /GABRIEL MANZANO

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