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Crônicas do cotidiano

Morrer bem

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Por Ricardo Chapola
Atualização:

Ilustração: Felipe Blanco

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Quando eu era pivetinho de tudo, morria de medo de cortar as madeixas. Só agora entendo o porquê de tanto escarcéu naquele cadeirão, esperneando, me esgoelando de chorar na esperança do meu pai mudar de ideia e me levar, sei lá, pra tomar vacina. Seria melhor. Qualquer coisa seria melhor que ir ao barbeiro. Eu MORRIA de medo. De quê? Óbvio: de morrer mesmo, cazzo!

É a velha mania da gente menosprezar o que se passa na cabeça daqueles pequenos gênios da raça que gostam de tênis que acendem atrás. Do que entendem, afinal das contas? Bubbaloo era massa, o Jiraya era foda, mas a curto prazo, fazer bolona de chiclete e ter uma espada ninja de plástico tirou toda nossa propriedade pra falar das coisas. Da morte acima de tudo, mesmo porque, até ontem, estávamos quentinhos, dourando nossas bandas nos aconchegantes fornos maternos.

Hoje, com cinco Copas do Mundo na timeline da vida, uns hematomas nas canelas e pelo menos uns dez protestos no currículo tupiniquim pedindo jujubas a preços camaradas e um busão melhor pra ir pra escola, só assim, posso começar a pensar em morrer.

Não que eu queira - fique bem longe de mim, maria-da-foice, sai pra lá!

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Mas como nem eu, nem você, leitor, nem Chuck Norris temos poder de arbitrar sobre isso, seria melhor que, quando ela viesse, viesse leve e nos levasse dessas pra melhor em grande estilo.

Viesse até ontem pra mim sob qualquer forma, menos travestida de barbeiro. E aqui a gente volta ao ponto que deu origem a esta crônica nem um pouco edificante - porque falar de morte não nos leva a lugar nenhum, a não ser à certeza de que nosso fim pode estar ali, virando a esquina, entre o banco Santander e um xérox. Ali no seu Isaías, o abatedouro humano onde o defunto, pelo menos, abraça São Pedro de cabelo penteado.

Seu Isaías corta cabelos - só de homem cabra da peste, de preferência. Faz barba, desde que o cliente aceite botar o pescoço à sorte de sua afiada navalha.É filho de jagunço, me disse logo de cara que manejar a tesoura é quase igual a usar a peixeira que o pai carregava na cintura: vapt, vapt e "voilà, mininu", me disse.

E eu sou o Ricardo, né? Lembram? Bubbaloo, Jiraya, medo de barbeiro...

Mas hoje, pensando melhor, só dos que dão de ombros pra morte da freguesia. Seu Isaías é diferente, sabe tratar o pescoço abusado como se fosse o último que desafia o humor de seus apetrechos cortantes. Um grande vanguardista, eu diria. Mudou até o protocolo milenar das barbearias: passou a sessão de leitura para a hora do abate. E com essa sua pilha de revistas, seu Isaías, Ritinha do BBB, Cleo Pires, Tiazinha três vezes, eu não me importaria em morrer aqui, não. Sem medo, cabra, desce a tesoura. E obrigado pela parte que me toca.

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