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Um banquete bom pra cachorro

Por J.A. Dias Lopes

Um banquete bom pra cachorroFoto:

Um ser humano padece de enfermidade rebelde, sobretudo de pele, ou tem um cachorro na mesma situação, e faz uma promessa para São Lázaro – aquele que, conforme o Novo Testamento, morreu e foi ressuscitado por Jesus. Se alcançar a graça da cura, dedicará uma cerimônia esquisita ao protetor dos leprosos, afastador das moléstias e patrono dos cães. Será o banquete dos cachorros para São Lázaro ou mesa de São Lázaro. A comilança acontecerá em uma casa, roça, terreiro de umbanda ou candomblé, de preferência à noite. A primeira iniciativa do promesseiro (assim ele é chamado) será convidar os donos dos cães das redondezas, em número ímpar. Sem a presença dos animais não há comilança. Chegando à cerimônia, os cães receberão atenções de fazer inveja às dispensadas pelos mais caros pet shops. “Ninguém lhes dará pancada”, explicou Luís da Câmara Cascudo no Dicionário do Folclore Brasileiro (Global Editora, 12ª edição, São Paulo, 2012). “Serão lavados, penteados, enfeitados com laços de fita no pescoço.” No chão varrido, haverá uma esteira e, sobre ela, uma toalha engomada de mesa, a melhor comida, vinho, refrigerantes e sobremesa. A imagem de São Lázaro estará na cabeceira, ladeada por velas acesas. Difundido no Norte e Nordeste do Brasil, o banquete dos cachorros se realiza quase sempre em dezembro, fevereiro e agosto, os meses das festas móveis de São Lázaro (17/12 e 11/02) e São Roque (17/8), com o qual o personagem bíblico ressuscitado por Jesus divide a proteção dos cães e muitas vezes é confundido. O professor de antropologia Sérgio Ferretti, da Universidade Federal do Maranhão, autor de Repensando o Sincretismo (Edusp/Fapema, São Paulo, 1995), estudou a cerimônia nos terreiros de culto afro-brasileiro de São Luís do Maranhão e fez observações curiosas. Às vezes os cães ficam sobre bancos, são servidos à mesa, e não no chão; em outras, o promesseiro come no mesmo prato de um dos animais. Depois do banquete, é a vez dos humanos receberem os mesmos pratos. Quando realizado em terreiro, o banquete dos cachorros pode ser acompanhado por três dias de toques de tambores, pois São Lázaro é sincretizado com Omulu-Obaluaê, a divindade controladora das doenças. Mas ninguém leva em conta a confusão feita na leitura bíblica. São Lázaro, personagem do Evangelho de São João, nunca foi leproso. Também não teve a vida relacionada aos cachorros. O Lázaro que sofria de hanseníase era um mendigo citado no Evangelho de São Lucas em parábola sobre a riqueza. Apesar de premiado com o céu, jamais ascendeu à glória dos altares. Segundo Ferretti, depois do banquete dos cachorros pode haver distribuição de alimentos rituais. É a “comida de obrigação” oferecida aos devotos, que aproveitam para fazer novos pedidos a São Lázaro. O alimento varia conforme o lugar. Na Casa das Minas, terreiro de tambor mais antigo de São Luís do Maranhão, fundado no século 19 e tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), o cardápio vai do acarajé e do aluá de milho ao abobó, prato típico daquele lugar. Leva feijão-branco de olho preto e azeite de dendê. E, com a devida licença dos seus poderosos voduns (divindades de origem jeje, correspondentes aos orixás iorubanos), é bom pra cachorro!

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