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Conheça um dos últimos pescadores de salmão selvagem da Escócia

Salmão de verdade não come ração, tem gordura delicada e carne saborosa. E é difícil de ser encontrado. O Paladar foi conhecer um dos últimos pescadores do salmão selvagem na Escócia, David Pullar, da Wild Salmon Company

Conheça um dos últimos pescadores de salmão selvagem da EscóciaFoto:

De Usan, Escócia

De calças jeans sujas, barriga estufando a camiseta preta, David Pullar refestela-se na cadeira da cozinha em frente a um janelão que se abre para o Mar do Norte: “A maioria das pessoas não sabe o que é o verdadeiro salmão. É que o de cativeiro, hoje tão comum, é uma porcaria. Tem aquela gordura espessa, parece sebo”.

David Pullar, dono da pequena empresa Scottish Wild Salmon Company, é dos últimos pescadores de salmão selvagem na Escócia, país historicamente reconhecido pela alta qualidade gastronômica do peixe que captura. Além da de Pullar, há apenas mais três pequenas empresas que trabalham exclusivamente com salmão selvagem. Elas perderam espaço para a criação de salmão em cativeiro.

David Pullar na sede da Scottish Wild Salmon Company. FOTOS: José Orenstein/Estadão

As fazendas de salmão atlântico, nas últimas décadas, expandiram-se no país e dominaram o mercado – muitas das fazendas são de propriedade de empresas norueguesas. Elas cresceram a tal ponto que o salmão de cativeiro, criado em redes instaladas no mar perto da costa e alimentado com ração, tornou-se um dos três principais itens de exportação da economia escocesa – movimentando mais de £ 1 bilhão (perto de R$ 3,8 bilhões).

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Negócio familiar. David Pullar pesca salmão selvagem desde os 20 e poucos anos. Hoje ele tem 75 e toca o negócio com os filhos, David e George. Sua empresa pega entre 3 e 5 mil salmões por ano, em Usan, próximo ao delta do Rio Esk, e em mais dois outros vilarejos no norte da Escócia.

De sua cozinha, David Pullar pai, olhos cansados, mas vivos, observa o mar calmo de verão do fim de julho. A névoa típica da região, que era densa pela manhã, vai se dissipando perto do meio-dia. Ele aponta no horizonte: “Para lá, siga reto e vai dar na Noruega”, diz, com forte sotaque escocês, difícil de entender. Vira-se um pouco na cadeira, aponta mais para o norte: “De lá, das Ilhas Faroé, Dinamarca, vêm nossos salmões”.

Casa da família Pullar

A famosa espécie nasce em água doce, nos rios, e cresce em alto-mar. Dos crustáceos que come vem a cor alaranjada característica – que, nos salmões de cativeiro é obtida com corantes sintéticos adicionados à ração. David conta que alguns peixes chegam a levar sete anos até voltar à costa onde nasceram, para reproduzir. É nesse momento que são capturados.

“Com o crescimento do salmão de cativeiro, o volume de peixe no mercado inevitavelmente aumentou muito. E o preço foi lá para baixo”, diz o pescador, enquanto come uma torta de morango feita pela mulher.

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Ele conta que recebeu algumas propostas para vender a empresa. “O cara veio aqui tentar me comprar dizendo ‘todo mundo tem seu preço’, para eu então dizer o meu. Eu disse: ninguém poderia pagar, porque a questão não é dinheiro. É uma forma de vida”, filosofa David no mesmo tom calmo, pausado e sério com que fala sobre sua admiração pelo salmão – ou sobre sua coleção de centenas de acordeons que lotam o porão da casa e contêineres no jardim.

A técnica que David utiliza para capturar salmões é tradicional na costa escocesa e existe há pelo menos 200 anos (leia abaixo). Ele foi aprendendo enquanto pescava. Conseguiu a licença de pesca e tocou de negócio, ensinando depois aos filhos.

Os peixes que pega em Usan, apenas entre maio e agosto, e nunca nos fins de semana – por exigência ambiental –, vão direto para uma casinha com câmaras refrigeradas, também de frente para o Mar do Norte. Ali, não duram nem um dia: acondicionados em caixas de isopor com gelo, etiquetados com a indicação de origem “Scottish Wild Salmon” (salmão selvagem escocês), vão direto para clientes na própria Escócia, Inglaterra, França, Japão. Entre eles a loja de departamentos londrina Harrod’s e o estrelado restaurante The Kitchin, em Edimburgo. David orgulha-se de ter servido a rainha-mãe Elizabeth, no castelo escocês de Mey, e a cúpula do G-8 no ano passado.

Falsa modéstia não é com ele: “Sem dúvida, nosso salmão é o melhor”. Mas por quê? O pescador, que nunca foi além da Europa e para quem o mundo é sua aldeia, explica: “Águas tão puras como a dos nossos mares e rios ninguém mais tem”.

Salmão selvagem recém-pescado na Scottish Wild Salmon Company

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Rede ou anzolA pesca de salmão selvagem com as armadilhas de rede geram controvérsia na Escócia. Pescadores esportivos, que capturam o peixe com anzol nos rios nos fins de semana, argumentam que sua atividade gera bem mais renda à Escócia, via turismo, que a pesca que David Pullar pratica. Conservacionistas, por sua vez, dizem que a captura de salmão selvagem ameaça os estoques da espécie. No início do ano, um grupo ligado ao Greenpeace chegou a protestar na propriedade de David, em Usan. O velho pescador escocês responde: “Este é o negócio que nos sustenta há três gerações. É nosso futuro. Não é do nosso interesse acabar com o peixe. Por que iriamos prejudicar nós mesmos?” O governo escocês garante a licença de pesca à família de David Pullar e permite a captura apenas quatro meses ao ano.

Carne firme, aroma suaveNa Escócia todo o ciclo de vida do salmão é obra da natureza – lá, não se criam alevinos para serem depositados nos rios, como é costume, por exemplo, no Alasca. Isso garante que o salmão atlântico capturado por pescadores como David Pullar seja estritamente selvagem – portanto, de aspecto e sabor mais característicos e preço muito mais alto (pode ser até três vezes maior que o do salmão escocês de cativeiro).

Um quilo de salmão selvagem fresco da Scottish Wild Salmon Company custa £ 17 (perto de R$ 68); já o salmão selvagem defumado, forma mais comum de consumo do pescado na Europa (na Escócia, come-se no café da manhã), chega a £ 100 o quilo (perto de R$ 380) no supermercado. Para efeito de comparação: o quilo de salmão chileno defumado da Damm custa R$ 149 no Pão de Açúcar. “A principal diferença do nosso salmão é a alimentação: ele não come ração, portanto, não come corantes ou antibióticos”, diz David Pullar.

De fato, é notável como o salmão selvagem escocês tem uma gordura muito mais delicada, menos aparente e mais suave ao paladar. A cor, mais do que laranja, é de um rosa intenso e a carne é mais firme: o peixe nada livre pelo oceano, vencendo centenas de milhares de quilômetros. É bem diferente do salmão a que estamos acostumados no Brasil para rechear duvidosos temakis besuntados com maionese. Por aqui, quase 100% dos salmões vêm de cativeiros chilenos. Só ano passado tivemos acesso ao salmão selvagem do Alasca, mas congelado.

A técnica de captura do salmão selvagem na Escócia é no mínimo bicentenária. Em Usan, onde David Pullar e os filhos pescam, redes de até 30 metros de cumprimento e não mais de 3 metros de profundidade ficam na água, presas à costa. O sistema é como uma armadilha: o peixe, que vem à beira-mar buscando a entrada para o rio onde vai procriar, entra numa cerca e é dirigido através de três “portas” pelas quais é mais fácil entrar do que sair. Os Pullars vêm então com um barquinho a motor e içam a rede. Os peixes saem da água vivos. “Mais fresco impossível”, diz o fundador da Scottish Wild Salmon Company.

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O trabalho para os Pullars começa cedo: na temporada de pesca, saem todo dia por volta das 7h para recolher os salmões, que se debatem no barco. Aí, só com força bruta: George Pullar dá umas pauladas secas e rápidas na cabeça do peixe, que instantaneamente para de se mexer. Ainda no barco, é espetada pela guelra do salmão a etiqueta da indicação de origem, com a bandeira da Escócia.

Por dia, o normal é pegar em média dez peixes, que logo vão para o gelo, em caixas de isopor. Em terra, os salmões são armazenados numa pequena sala, na propriedade dos Pullars, onde o cheiro de peixe é bem menos intenso do que se poderia supor. O ambiente rescende levemente a maresia. No dia seguinte da pesca, os peixes já são distribuídos aos clientes.

Os salmões capturados na costa escocesa pesam, geralmente, até 2 kg – mas podem chegar a 20 kg. O maior que os Pullars já pegaram tinha 17 kg.

O salmão nasce na água doce e ali fica pelos primeiros anos da vida – eles passam até três anos nos estuários escoceses. Já maiores e de cor mais escura, saem para o mar na primavera– é nesse momento que podem alcançar as Ilhas Faroe e a Groenlândia, na Dinamarca, e mesmo o Canadá. Esse período de migração pode levar até três anos.

Os salmões voltam às águas doces em que nasceram depois do inverno. Alguns voltam logo após a primeira estação fria: são então chamados de grilse, salmonete. O salmão propriamente passa ao menos dois invernos em águas abertas antes de “voltar para casa” – e abastecer o negócio da família Pullar.

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>>Veja a íntegra da edição do Paladar de 21/8/2014

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