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Onde tudo gira em torno do vinho

Não bastasse ter dois restaurantes estrelados, o ítalo-parisiense Enrico Bernardo é também o mais jovem sommelier a conquistar o título de melhor do mundo. O almoço-entrevista com o Paladar virou aula sobre a arte de servir vinho

Onde tudo gira em torno do vinhoFoto:

Por Guilherme Velloso

O almoço estava marcado para as 12h30, no Goust, que fica no 1º andar de um prédio histórico (L’Eléphant Paname), no coração de Paris. Tal como o Il Vino, seu irmão mais velho, o restaurante tem o sobrenome “d’Enrico Bernardo”, consagrado “melhor sommelier do mundo” no concurso de Atenas de 2004, quando tinha 27 anos. Até hoje foi o mais jovem a conseguir esse feito.

Magro e elegante, sinais de calvície nas têmporas aos 38 anos, Enrico me recebe simpático e logo me conta que o interesse pela gastronomia surgiu na infância, em Limbiate, perto de Milão. “Quando minha mãe cozinhava, eu estava o tempo todo cheirando ervas, especiarias, vegetais, frutas. E ela me dava coisas para provar.” A paixão foi materializada em seus dois endereços parisienses e no terceiro, em Courchevel. Bernardo também é dono da Champagne & Vins, butique de vinhos na Rive Gauche. “Profissionalmente sou mais francês que italiano”, diz.

Menu. Um almoço no Goust pode começar com creme de hadoque, seguido por um tartare de vitela (foto), acompanhado por uma taça de Barbaresco. FOTOS: Divulgação

Ele se divide entre o almoço-entrevista com o Paladar e a supervisão do serviço no elegante salão decorado em tons de bege e marrom, com poltronas de veludo. Não se ocupa apenas dos vinhos. Observo-o enquanto prepara um coquetel com destreza: num copo alto com gelo, põe Campari, licor de laranja, menta e Moscato d’Asti. “Um Campari d’Asti”?, arrisco. Ele sorri e aprova o nome.

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Atende o telefone, entra e sai da cozinha, coloca generosa porção de trufas brancas num prato de massa e, é claro, abre e prova garrafas de vinhos. Quando pergunto o que espera dos sommeliers que trabalham com ele (oito entre o Goust e o Il Vino), me dá sua visão da profissão com uma pitada de humor: “Primeiro, que tenham vontade trabalhar”. Depois, explicou que o sommelier deve ser capaz de falar do vinho, apresentar os pratos e até chamar um táxi para o cliente. “O serviço não é apenas abrir uma garrafa, provar o vinho e servi-lo.” Pergunto se o cliente deve informar o sommelier sobre a faixa de preço que pretende pagar. “Não é uma questão proibida”, diz. “Os americanos estão habituados a isso, os europeus são mais sensíveis a essa situação.” Mas a pergunta ofende o profissional?, provoco. “Ao contrário, evita problemas.”

Enrico estudou hotelaria em Milão, onde também fez seu primeiro estágio na cozinha de um restaurante. Ganhou o concurso de “o melhor jovem estudante de cozinha da Europa”, na Sicília. Até então, tivera pouco contato com o vinho. Mas, na viagem à Sicília, conheceu Giuseppe Vaccarini, eleito melhor sommelier do mundo em 1978, que se tornaria seu “tutor”. O aprendiz não desmereceu o mestre: Melhor Sommelier da Itália em 1996/1997; da Europa, em 2002; e do Mundo, dois anos depois.

O trânsito fácil entre o salão e a cozinha explica a gênese de seus restaurantes. No Il Vino, que abriu em 2007 após deixar o posto de diretor de vinhos e bebidas do Le Cinq, no hotel George V, em Paris, a ideia foi criar pratos a partir dos vinhos. No Goust, aberto em 2013, é exatamente o contrário: parte dos pratos para escolher os vinhos.

Ele diz que degusta 30 vinhos por dia, principalmente franceses e italianos. Do Brasil (que já visitou duas vezes) provou um Cabernet Sauvignon da Miolo. Mas, quando perguntado sobre seu “vinho do coração”, a origem fala mais alto: “Barolo”.

Com boeuf bourguignon, Bordeaux (mas fale baixo)

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Entrevista: Enrico Bernardo, sommelier e restaurateur

Qual o fator mais importante ao harmonizar um vinho com um prato? O equilíbrio. Isso significa que cada sensação no prato deve ter uma sensação equivalente no vinho. Por exemplo: se você come ostra, que é gordurosa e salina, com um pouco de iodo, o que vai bem com a gordura é a efervescência e a acidez. É por isso que frequentemente se harmoniza ostra com um Muscadet (do Loire), por seu frescor e acidez, ou com champanhe, porque a efervescência mata a sede e equilibra a gordura. E, se forem minerais, arredondam o lado iodado da ostra. Bom exemplo é o Chablis. Mineral, é perfeito com ostra.

Pode dar outros exemplos? Num prato com muito molho, como o boeuf bourguignon, o molho ama os taninos, porque o tanino é como uma esponja. Ele enxuga a gordura e permite encontrar o equilíbrio para um prato mais untuoso. Se você provar o prato sem o vinho, a boca fica oleosa. Você bebe o vinho para secar a gordura. E aí tem o equilíbrio.

O que mais se deve levar em conta? Se o prato exige muita mastigação, como um filé de carne bovina, isso provoca salivação. Então você precisa de um vinho com boa estrutura alcoólica, porque o álcool seca a saliva. Assim, em cada ingrediente se encontra um “ponto culminante” na sensação dominante e é preciso encontrar a sensação dominante oposta no vinho para chegar ao equilíbrio, que é essencial.

O boeuf bourguignon é um prato típico da Borgonha. A harmonização natural seria com um Pinot Noir, o tinto por excelência da região, embora esses vinhos sejam mais macios em boca? Não necessariamente. Um boeuf bourguignon vai melhor talvez com um Bordeaux, que tem mais taninos. Para combinar com um Borgonha tinto seria melhor uma ave com molho cremoso, como por exemplo, um volaille fermière que tem o molho aux cèpes (cogumelos) ou um risotto aux champignons, porque, nesse caso, o Pinot Noir tem a acidez, que é mais interessante que os taninos. A acidez funciona mais com a gordura e menos com a untuosidade.

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Você teria coragem de repetir essa sugestão na Borgonha? (Rindo). Não, só vivendo em Paris…

Até que ponto a velha regra que recomenda harmonizar um prato regional com um vinho da mesma região continua válida? Por exemplo, no almoço de hoje, o tartare de vitela com trufas brancas de Alba foi acompanhado de um Barbaresco, ou seja, prato e vinho da mesma região. Há, sim, muita verdade nessa questão de harmonizar vinhos da região com pratos da mesma região. Isso funciona muitas vezes. Mas, no caso do Piemonte, poderíamos ter um vinho à base de Barbera ou de Freisa, que não combinariam tão bem com a trufa branca. A Freisa combinaria com charcuterie (frios) e a Barbera com carne branca assada.

Ou seja, como não há apenas um vinho por região, é preciso cuidado… É preciso encontrar o melhor para cada harmonização. O problema é que cada vez mais se pratica uma cozinha não regional. Cada vez mais se misturam ingredientes de diferentes regiões, o que torna mais interessante e complicado encontrar o vinho adequado.

Você concorda que a ‘globalização’ está deixando os vinhos cada vez mais parecidos? Essa questão da estandardização é verdadeira nos vinhos mais genéricos, ou seja, na faixa média e baixa. Nos grandes vinhos, entretanto, a personalidade do terroir se destaca. Os grandes terroirs, os grand crus, fazem a diferença.

No teste do ‘branco ou tinto’ às cegas, muita gente erra

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Em novembro último, no Il Vino, o menu à l’aveugle (às cegas), em quatro etapas, composto de entrada, prato de peixe, prato de carne e sobremesa custava 95 euros, aí incluída uma taça de vinho para cada prato. Um dos vinhos costuma ser servido em copo escuro, para desafiar o cliente a identificá-lo como branco ou tinto. Os erros são muito mais frequentes do que se supõe. Sem ver, é fácil confundir.

O cliente também tem a opção de escolher um vinho de uma lista com diversas sugestões sem saber que prato será servido com ele, embora não seja difícil imaginar, pelos rótulos oferecidos, se será uma entrada, peixe ou carne, ou uma sobremesa. Entre as escolhas disponíveis havia, por exemplo, um Château Beau-Séjour Bécot, premier cru de Saint-Émilion, da excelente safra 2009, ao preço de 65 euros a taça de vinho e o prato, no caso certamente de carne, que o acompanharia.

No Goust, o preço do menu première étoile, em comemoração à primeira estrela recebida pelo restaurante na edição 2014 do tradicional Guia Michelin (o Il Vino mantém a sua desde 2008), composto de quatro serviços, era de modestos, para os padrões brasileiros, 85 euros (R$ 270, aproximadamente) e com harmonização de vinhos, R$ R$ 360). No Goust, os vinhos servidos em taça são identificados apenas pela categoria: découverte (descobertas), por 8 euros (R$ 25); classique, os clássicos, por 12 euros (R$ 38) e prestige, os vinhos de prestígio, por 16 euros (R$ 50).

Ambos os restaurantes abrem de terça a sexta para almoço e jantar e sábado apenas para jantar.

SERVIÇO

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Goust Onde: 10 rue Volney, Paris Tel: 01 40 15 20 30

Il Vino Onde: 13 boulevard de la Tour Maubourg, Paris Tel: 01 44 11 72 00

Il Vino (Courchevel) Onde: La Porte de Courchevel 1850, Paris Tel: 04 79 08 29 62 Site: www.enricobernardo.com

Depoimento: Guilherme Velloso

Estilo. O salão decorado com sobriedade, em tons de bege e marrom,cria atmosfera elegante de casa em Paris

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Para cada prato, a taça exata

Meu almoço no Goust começou com um creme de hadoque defumado, purê de beterraba e enoki, um cogumelo japonês crocante. Na entrada, tive uma grata surpresa – não pelo prato, um saboroso, ainda que convencional, tartare de vitela com parmesão. Mas pela generosa porção de trufas brancas de Alba com que foi coberto. Foi acompanhado de uma taça do Barbaresco Montefico Carlo Giacosa 2010 (70 euros a garrafa). O primeiro prato trouxe lulas salteadas sobre um purê de pimentão vermelho, com tempurá de cebolas e abobrinhas grelhadas. Curiosamente, o vinho que acompanhou o prato foi um tinto frutado, o Martinelle 2011, denominação Ventoux (Rhône), corte de Syrah e Grenache Mourvèdre e Carignan.

Como prato principal, um clássico magret de colvert, pato selvagem muito popular na França, acompanhado de castanhas. Com ele, mais uma vez, um vinho de apelação menos conhecida (Saint-Mont), o Monastère de Saint-Mont 2008. Tinto mais encorpado (corte de Tannat e Cabernet Sauvignon). A sobremesa, à base de chocolate e laranja, veio escoltada por um cálice de P.X., vinho doce de Jerez. Harmonização clássica e perfeita. Provavelmente por educação, foi o único prato que Enrico, que passara o almoço alternando a entrevista com a supervisão do serviço, partilhou comigo. Para ele, apenas meia-porção.

>>Veja a íntegra da edição do Paladar de 12/2/2015

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