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Comida

Fome e delírio no Hyatt

Por Ivan Marsiglia


FOTOS: Tiago Queiroz/EstadãoFoto:

Para alguém que não sabia a diferença entre gourmet e gourmand, a proposta de passear pelo maior evento da culinária brasileira, petiscando aleatoriamente quaisquer das 70 mesas de debates, conversas e comilanças e escrever um texto a gosto, sem dieta ou restrição, parecia temerária por parte dos editores, mas apetitosa para qualquer repórter. De modo que este voyeur gastronômico, que com sua magreza de monge jejuado nem sequer poderia reivindicar a reputação de bom garfo, topou o desafio e lançou-se à experiência com a avidez de um Hunter Thompson do “jornalismo gordo”. Uma sequência de aperitivos, entradas, primeiros, segundos e enésimos pratos, sobremesas e digestivos depois, o sabor que fica é de descoberta – de um novo sentido para a expressão “você é o que come”.

Para começar, nem só de modos afrancesados vive a diversidade do Planeta Comida, tão bem explorada em três dias de evento que não se limitaram ao Hotel Hyatt, em São Paulo. Já na sexta-feira, o chef André Mifano deixou ver o que acontece diariamente atrás das paredes do sofisticado restaurante Vito, destrinchando, na aula intitulada, sem uma lasca de frescura, Porco Total, um suíno de 18 kg. Convertido em açougueiro, André lançou mão de facas, cutelos e até uma serra para remover parte por parte do bicho. Não sem antes, ele que é judeu e iniciado no candomblé, falar do respeito que tem pelo que considera “o mais completo dos animais” e revelar que sempre pede desculpas antes de abatê-los.

FOTOS: Tiago Queiroz/Estadão 

Prece feita, extraiu com as mãos a matéria-prima do prato de resistência de seu restaurante: a barriga de porco recheada de nozes e especiarias, acompanhada de risoto de maçã. O espetáculo para estômagos fortes – coroado com os “cracks!” da decapitação do animal e o corte de outra iguaria, as bochechas – não impediu que o público devorasse em minutos os sete pratos que o cozinheiro preparou com as carnes. Huuum!

Gritos de horror e paixão também se fizeram ouvir sábado, na aula do rio-pardense Jefferson Rueda, figuraça que pilota a cozinha do Attimo. Ao som de Trocando em Miúdos, com Maria Bethânia, ao fundo, Jefferson levou às últimas consequências sua filosofia de vida, anunciada com sotaque caipira logo de início: “Andou, pulou ou rastejou, panela nele, gente!”. E tangeu um verdadeiro banquete com as peças mais controversas do nosso amigo boi: bolinho de miolo como aperitivo, nuggets de dobradinha e feijão branco de entrada, fígado com tubérculos e cebola crocante no prato principal e doce de leite com geleia de mocotó de sobremesa. “Tá uma maravilha!”, exclamou uma senhora aficionada lá atrás.

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Lembranças do passado que se materializam em comida e palavras que evocam sabores estiveram presentes na cozinha de ideias do escritor Luis Fernando Veríssimo. Incapaz, como se disse, de fritar um ovo (“sou daqueles que só entram na cozinha para perguntar por que está demorando”), leu uma crônica em homenagem a essa preciosa dádiva galinácea. Depois, contou ao público aquela que seria, parafraseando Marcel Proust, sua madeleine pessoal – só que ao contrário. A linguiça ficcional comida por um certo Capitão Rodrigo criado por seu pai, Érico Veríssimo, quando o pequeno Luis Fernando tinha só 11 anos, despertou seu paladar para a escrita. Em busca do tempo e o vento perdidos, lamentou, por motivo de saúde, não poder comer como outrora: “A celebração da gastronomia acaba sendo uma celebração da vida e da amizade”. E, como gosto de artista não se discute, provocou engulhos na audiência com a descrição de seu quitute especial de infância, banana passada num prato com azeite e sal.

Surpresas uma atrás da outra. Mesmo na única palestra em que o repórter se julgava expert no assunto, Como Preparar um Café Profissional em Casa, viu-se fragorosamente desmentido. No domingo, a barista Isabela Raposeiras derrubou um a um os cânones da nação cafeeira tupiniquim. Diga-se que, em 1953, o diplomata e escritor mexicano Alfonso Reyes já denunciava em seu Memorias de Cocina Y Bodega, o descaso vira-lata com que tratamos a bebida que é a verdadeira paixão nacional: “Eu que amo tanto o Brasil, onde produzem tão bom café, vejo quanto não sabem saboreá-lo nem prepará-lo. Em vez de tostar o grão, é frequente que o carbonizem; depois, o desvirtuam com excesso de açúcar; engolem-no de um trago só para evitar que esfrie. Mas queimar-se não é saborear. Do velho mineiro (o mais castiço do Brasil) contam que sempre reclama porque não lhe servem o café suficientemente quente; e, então, o cospe de raiva dizendo que está frio, mas o cachorro que recebe a cusparada sai ardido, gritando: Cuén! Cuén!”.

Depois de moer a autoestima verde-amarela afirmando, com seu jeito manso e bem-humorado, que o intragável “chafé” norte-americano está mais próximo do preparo perfeito que o petróleo nosso de cada dia, Isabela demoliu das velhas mokas italianas às cools maquininhas de expresso. Sobrou até para o George Clooney. Reabilitou, então, o tradicional coador com filtro de papel e cravou um único item inegociável: o grão tem que ser moído na hora. Para escândalo de alguns, disse que o “chiquérrimo” jacu bird coffee, feito a partir de grãos comidos e excretados por um pássaro natural da Mata Atlântica e vendido a R$ 300 o quilo, é pra jacu. “Os cafés do Espírito Santo não cagados são melhores que os cagados”, decretou com finesse.

A gastronomia, como o sistema digestivo, é território de emoções às vezes brutas, às vezes delicadas. Sábado, na porta do premiado D.O.M., sexto melhor do mundo no ranking da revista Restaurant, Alex Atala estacionou sua SUV para aguardar a van que traria os participantes da visita guiada a sua estelar cozinha. A primeira fã, uma morena baixinha e de cabelos descoloridos, já o esperava na calçada da Rua Barão de Capanema (“um amigo me chama de ‘atalete’, de tanto que admiro o Alex”). Estendeu a mão para o chef, que a abraçou.

“Sou conhecida como Zezé Amorim, cozinheira de madame. Atualmente, trabalho na casa da dona da Riachuelo, mas morei na Itália cinco anos atrás. Havia muito preconceito contra nossa comida. Uma vez preparei feijoada e uma italiana disse que os brasileiros mangiano come i maiali (comem como os porcos), tudo no mesmo prato. Hoje tá aí, ó, o Alex, levando o nome do Brasil. Sexto do mundo! Tem o Pelé no futebol e você na cozinha.”

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O grupo passeou pelo salão com capacidade para só 45 clientes de cada vez e se espremeu na diminuta cozinha da casa – um corredor em L com apenas 54 m², onde 12 funcionários se desdobram para montar e servir de 600 a 800 pratos por noite. “Meu prazer vai além da preparação da comida. Gosto de ver o serviço funcionar como um relógio”, disse Atala, que mantém um altar com um São Jorge que o acompanha desde o início da carreira, ao lado de um boneco do roqueiro Joey Ramone e uma caveira com topete de Elvis Presley. Depois, descascou – literalmente – um abacaxi para os visitantes, que cortou em pedaços pequenos.

Sobre cada um, pousou a mais exótica descoberta feita em suas andanças pela Amazônia em busca de ingredientes: uma formiga-saúva. Nem todo mundo encarou, mas os corajosos confirmaram “o sabor de capim-santo com uma nota de gengibre” descrito pelo cozinheiro.

Aí está a grande aventura que pôs a cozinha brasileira na linha de frente da gastronomia mundial. Atala é o ponta de lança de uma constatação óbvia: a inigualável biodiversidade do País é fonte inesgotável de sabores e sensações. Que o digam os participantes estrangeiros do encontro: tanto o tradicionalíssimo confeiteiro francês Daniel Briand quanto o revolucionário padeiro inglês Ben Mackinnon saíram ainda mais interessados nos frutos do Cerrado e farinhas nacionais. O dinamarquês Mark Emil Tholstrup Hermansen, que foi do Nordic Food Lab, que pesquisa ingredientes para o Noma, ex-número 1 e atual 2º melhor do mundo, emendou viagem para Belém, onde terá aulas com o chef paraense Thiago Castanho.

Foram Thiago e o trio Ana Soares, Mara Salles e Neide Rigo que protagonizaram os momentos mais tocantes do evento. Ele, à frente dos restaurantes Remanso do Peixe e Remanso do Bosque, na capital paraense, foi aplaudido “em cena aberta” ao finalizar a Jardinagem de Chocolate em Homenagem à Ilha do Combu, feita com o cacau de várzea de produtores locais. “Isso não é nada”, agradeceu Thiago, “o que a gente precisa é passar a ver o ingrediente não como um produto a ser usado, mas como uma cápsula de história, que guarda um modo de ser, uma relação com a terra, a forma como pessoas se ligam à comida e à natureza”.

Mais sutis em sua Investigação Doce, Ana, Mara e Neide apresentaram os sabores de um Brasil menos açucarado, da “sopa de raízes fermentadas no tempo”, da mandioca puba, da bebida de abacaxi fervido indígena (que lembrou o capilé da avó materna do repórter, mineira de Itanhandu), das castanhas, do mel de jataí e do chouriço de caicó, feito com sangue de porco, farinha de mandioca e especiarias por uma única família – “está dando o último adeus por causa da proibição do uso de sangue cru”, alertou a pesquisadora Ana Rita Dantas Suassuna, prima de Ariano e autora de Gastronomia Sertaneja – Receitas que Contam Histórias. Quanto à diferença entre gourmet e gourmand, fica para uma outra vez.

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* IVAN MARSIGLIA É JORNALISTA E ESCRITOR, AUTOR DE A POEIRA DOS OUTROS

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