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Opinião|Ressurreição, de Tolstoi, ou a culpa move o mundo

Freud dizia que era a culpa, e não a fé, que removia montanhas. Sabia do que falava. Assim também sabia Liev Tolstoi, como prova seu último grande romance, Ressurreição, adaptado como minissérie para TV pelos irmãos Paolo e Vittorio Taviani (de Pai Patrão, A Noite de São Lourenço e César Deve Morrer). Na verdade, trata-se de uma microssérie de dois capítulos, totalizando 185 minutos. A atenção do espectador será recompensada em cada um deles.

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

Como sabem os leitores de Tolstoi, a trama de Ressurreição baseia-se num caso real, relatado ao escritor pelo juiz Koni. O caso é o seguinte: um jovem aristocrata servia como jurado num caso de assassinato quando reconhece na ré a mulher com quem ele próprio havia se relacionado anos atrás. Sentindo-se responsável pela situação, ele se impõe o dever de casar-se com a moça. O desfecho na vida real é triste. Condenada, a mulher morre no cárcere, vítima de tifo.

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Nesse pano de fundo, Tolstoi encontra inspiração para escrever um libelo contra a hipocrisia social e a injustiça dos tribunais russos com os acusados pobres. Ele conclui a primeira versão em 1895. O romance saiu em capítulos na revista Niva e conta-se que Tolstoi empregava o dinheiro obtido na ajuda a seguidores da sua doutrina perseguidos pelo czar. Cortada pela censura e mutilada pelos próprios editores, a versão original foi restabelecida apenas em 1933.

Na adaptação, feita em 2001, os Taviani empregam algumas das suas melhores qualidades, conhecidas dos admiradores de seus filmes - um registro fotográfico preciso e caloroso, um rigor de direção que nunca prejudica o afeto em relação aos personagens. Paolo e Vittorio fazem um cinema humanista, o que não significa ser "bonzinho" em relação a todos, mas apenas estar atento à dimensão humana daqueles que são retratados em suas obras. Desse modo, podemos nos reconhecer no príncipe Dimitri Ivanovitch, tanto em seus impulsos de generosidade quanto em suas hesitações. E podemos compreender perfeitamente, embora com espanto, os motivos da acusada Kátia Máslova, que, do fundo da sua desgraça, vê em Dimitri tanto possibilidade de resgate quanto de perdição total.

Esses desvãos de alma, esses saltos abruptos de sentimentos, tão característicos da literatura russa, não são evitados pelos Taviani. Pelo contrário; ao fazer uma adaptação fiel, mas não literal, eles acentuam a trepidação psicológica dos personagens. De tal forma que, se a ideia de sacrifício e expiação da culpa encontram-se presentes em Dimitri, também não estão ausentes em Kátia. A capacidade de renúncia dos personagens produz uma certa dissonância no espectador dos nossos dias, em especial se ele estiver muito contaminado pelo pragmatismo atual. Como entender personagens que não se movem apenas por seu interesse material imediato, e mesmo colocam-se contra eles por seus atos? Pois bem, essa é a contribuição da literatura russa à compreensão da nossa alma paradoxal. Godard dizia que, quando a capacidade de ficção do Ocidente se encontra esgotada, é hora de abastecer-se na Rússia. Em geral, ele sabe do que fala, pois é um raro caso de cineasta que lê.

 Foto: Estadão

Na história de Ressurreição, adaptada pelos Taviani, Kátia Máslova é a criada da família de Dimitri que ele, então um estudante, seduz e abandona. A vida de Kátia decai e a leva à prostituição e, em seguida, à acusação de haver envenenado um cliente. É nesse ponto que, passados dez anos, Dimitri a reencontra e resolve purgar seus pecados.

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Com ótimas atuações de Stefania Rocca (Kátia) e Timothy Peach (Dimitri), mais a música envolvente de Nicola Piovani, Ressurreição é um drama das consciências culpadas, mas também da redenção e iluminação espiritual.

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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