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Opinião|Na Terra de Amor e Ódio

Melhor ver sem preconceitos este Na Terra de Amor e Ódio, de Angelina Jolie. Longe de ser um filme-ONG, como muitos tacharam antes de vê-lo, o longa consegue realizar uma imersão bastante convincente na Guerra na Bósnia, e isso através de um conflitado relacionamento amoroso. O filme tem fibra.

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

Seu fundo, claro, é humanista e baseia-se na denúncia de atrocidades cometidas contra os bósnios na guerra travada pelos sérvios. Foi uma das catástrofes recentes da humanidade. O conflito nasce da dissolução da ex-Iugoslávia, com o fim do campo socialista e o nascimento de vários países independentes. O que se manteve sob Tito - etnias e povos muito diferentes sob a mesma bandeira iugoslava - ruiu por completo com o fim da guerra fria. À esta seguiu-se uma guerra bem quente na região, na qual pereceram centenas de milhares de civis. A tragédia de Sarajevo ficou marcada na consciência europeia e mundial.

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Esse é o quadro sobre o qual Angelina irá pintar o drama particular que move seu filme. Nas primeiras imagens vemos uma mulher se preparando para ir a um baile, depois a vemos nos braços de um possível namorado. Logo em seguida, há uma explosão, um atentado a bomba no local, e toda a realidade à volta começará a mudar de maneira brutal, de uma hora para outra.

O casal é formado por Ajla (Zana Marjanovic) e Danijel (Goran Kostic). Ela bósnia; ele sérvio. Mais tarde, e já no quadro trágico da guerra e dos campos de concentração, eles irão se reencontrar. Ele como oficial sérvio, um capitão respeitado por seus homens e filho de general, um dos pais da pátria e mandachuvas do governo sérvio. Ela, como prisioneira, enviada para um campo de concentração junto com outras mulheres, destinadas a servir (em todos os sentidos que se imagina) o exército ocupante.

Esse ponto - o relacionamento entre Ajla e Danijel - será o mais interessante da história. Mesmo porque, ele resumirá a situação de povos que viveram muito tempo juntos e passam a se odiar. Danijel encontra Ajla na situação de prisioneira e tenta protegê-la. Deseja-a apenas para si. Ao mesmo tempo, não pode agir de maneira ostensiva, pois cairia em descrédito diante dos comandados. Uma coisa é usar sexualmente uma inimiga, isso faz parte da anomia da guerra; outra, bem diferente, é amá-la, ou mesmo desejar sua exclusividade. Danijel, vive, em uma palavra, uma situação difícil, no fio da navalha. Da parte de Ajla a coisa não é mais fácil. Sente-se culpada ao dispor de privilégios que suas amigas e compatriotas não têm. Além disso, literalmente dorme com o inimigo, alguém que provavelmente foi responsável pela morte de muita gente do seu povo, talvez até de conhecidos.

A ambivalência da situação é alimentada pela desconfiança mútua, que aflora vez por outra. Se o desejo dos dois é real, até que ponto consideram o outro como digno de confiança? Danijel desconfia o tempo todo de que pode estar sendo usado. E o sentimento de culpa de Ajla parece sempre maior. O cimento que une o casal está sempre pronto a rachar. Mesmo porque existem as pressões externas, em especial por parte do pai de Danijel, exasperado com a situação vivida pelo filho. Uma das cenas mais tensas do filme é o encontro a sós entre Ajla e o pai de Danijel, interpretado pelo grande ator Rade Serbedjiza. Ele pede que ela lhe pinte o retrato (Ajla é pintora). Enquanto posa, o general vai contando, como casualmente, o que a sua própria família havia sofrido com os bósnios. Nesse momento, ela começa a perceber o que virá pela frente. Talvez tenha ideia da violência, mas não de sua intensidade.

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Porque, apesar de algumas concessões, que raspam o melodrama, Angelina sabe ser dura quando dramaticamente isso se impõe. Não procura baratear as situações e tira delas as consequências que se esperam e se temem nesse quadro de guerra. Talvez não vá tão longe quanto foi Liliana Cavani em O Porteiro da Noite ao descrever o relacionamento sadomasoquista entre um oficial nazista (Dirk Bogarde) e sua prisioneira (Charlotte Rampling). Este é um filme de extremos, próprio de uma época (anos 1970) que não brincava em serviço.

Angelina atua no mundo mais depurado do século 21. Se as atrocidades das disparidades sociais e das guerras continuam a existir na vida real, elas costumam chegar ao cinema de maneira muito atenuada, palatável até. Para não prejudicar o espetáculo. Não é o caso do seu filme, que contém várias cenas capazes de chocar a plateia mais sensível. Na Terra de Amor e Ódio é muito mais do que um filme dirigido por uma bela atriz de Hollywood que traz na bagagem o peso das preocupações sociais. É muito mais do que se espera.

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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