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Opinião|Faroeste caboclo

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

Fosse nos anos 1960, o filme poderia ser denominado de faroeste do Terceiro Mundo à maneira de Rogério Sganzerla. No final dos anos 1970, inícios dos1980, quando surge a música, agora transformada em longa-metragem, cabe bem no título de Faroeste Caboclo.

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Faroeste deve atrair os fãs de Renato Russo e da Legião Urbana. Mas música é música e filme é filme - e enquanto tal deve ser considerado. Partindo do tema do amor bandido, René Sampaio constrói uma obra cheia de sensualidade e energia. Não apenas pela dupla Fabrício Boliveira e Ísis Valverde nos papéis centrais, mas também pela familiaridade de ambientação em cidades que ele conhece tão bem, Ceilândia e o Plano Piloto de Brasília. Aos olhos do preconceito nacional, Brasília é a terra dos políticos e dos corruptos, alías tidos como sinônimos. No filme, Brasília aparece como é, uma cidade com vida própria, intensa e cheia de contradições.

Desse modo, Faroeste Caboclo parece mesmo um filme com jeito de rua, carne e ossos, e não um desses produtos anódinos e artificiais, que não cheiram e nem fedem e perfazem a maior parte da produção nacional. Faroeste tem estilo, jeito próprio e cacoete, embora, talvez, venha a receber críticas por não ser tão "sujo" quanto poderia ser, dada a sua inspiração inicial.

Em todo caso, o enredo proposto por Renato Russo e desenvolvido por René Sampaio é muito bom. Fala do nordestino João (Fabrício Boliveira) que deixa Santo Cristo para o sonho de uma vida melhor em Brasília. Encontra-se com o primo e traficante Pablo (vivido pelo uruguaio César Troncoso) e com ele passa a trabalhar. Conhece a garota Maria Lúcia (Ísis Valverde), filha de um senador (Marcos Paulo). O romance entre os dois é perturbado pela intromissão de Jeremias (Felipe Abib), que também cobiça a moça e faz parte do tráfico de drogas da região.

A linguagem audiovisual é ágil e, em algumas cenas, dialoga com o western spaguetti e, pela proximidade, com Tarantino. Conta com a figura carismática de Boliveira, uma revelação, e a midiática Ísis, a periguete da novela Avenida Brasil. Formam um bom par. A trilha sonora é envolvente. Tudo somado, resulta num filme de boa dinâmica, que tem trunfos para ser um sucesso de público. Em especial junto ao público jovem, que mantém viva a memória de Renato Russo. Contribui para essa expectativa o tratamento aberto dado ao uso da maconha, retratado aqui sem apologia, mas também sem preconceito.

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Mais interessante ainda é a maneira como contempla a diferença de classes abissal no Brasil e os caminhos que essa fricção pode se abrir. Fossem tempos mais românticos e Maria Lúcia poderia ser uma "pobre menina rica" como a da época da bossa nova. Agora, é uma garota um tanto desmiolada, que alimenta paixão por um rapaz que deseja mudar de vida e tem de lutar por isso. Há uma óbvia beleza nesse amor trágico e radical, ainda mais em tempo calculista como o nosso. O amor transborda a lógica e a subverte.

Bom e estimulante, Faroeste Caboclo parece tão autoconfiante que passa por cima de algumas inverossimilhanças. Uma delas é João ter um primo gringo traficante em Brasília. Outra, a maneira como entra e sai nos apartamentos do Distrito Federal. Mas, se olharmos bem, existe um tom mesmo de fábula nessa história toda e podemos nos dispensar dessa obsessiva prova da verdade sempre que nos confrontamos com o cinema e sua exigência de realismo. Alguém pede realismo a Tarantino, para citá-lo mais uma vez? Não. Exigimos ritmo, enquadramentos originais, humor, uma dinâmica que nos envolva e nos leve para dentro da história. Por que não fazer o mesmo com Faroeste Caboclo?

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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