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Opinião|Diário de Brasília 2014. O Grande Sertão de Glauber Rocha

 

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Paloma Rocha Foto: Estadão

BRASÍLIA - Foi emocionante a abertura do Festival de Brasília, em sua 47ª edição. Paloma Rocha, filha do cineasta Glauber Rocha, emocionou-se ao apresentar a obra-prima do pai, Deus e o Diabo na Terra do Sol. Falou da ausência da mãe, Dona Lucia Rocha, falecida em janeiro, e que era, de fato, presença constante nos festivais de cinema brasileiros, em especial no de Brasília. Disse também das dificuldades do Tempo Glauber, memorial do cineasta mantido no Rio e que fechará as portas até o fim do ano. Grande parte do acervo de Glauber, que viveu apenas 41 anos mas produziu intensamente, já se encontra aos cuidados da Cinemateca Brasileira, em São Paulo. A exibição do filme foi precedida por dois números apresentados pela Orquestra de Câmera do DF, a ária da Bachiana nº 5 e um dos temas de Sérgio Ricardo usados no filme de Glauber.

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A projeção foi histórica. Com a cópia restaurada em sistema DCP, com 2K de definição, produziu um impacto na tela que as novas gerações não conheciam. De fato, a maioria das pessoas conhece a obra de Glauber através de dos antigos VHS e dos atuais DVDs. De ótima qualidade, diga-se, mas o impacto na tela grande, com uma boa cópia, é outra coisa. O som também estava perfeito, o que é fundamental num trabalho que em muito se aproxima a uma ópera do sertão, pontuada pela música de Villa-Lobos, com seu diálogo com a literatura de cordel e os repentistas sertanejos.

Ficou bastante clara, para quem esteve no Cine Brasília, a universalidade da obra de Glauber. E, por paradoxo, não há obra mais enraizada no imaginário sertanejo nacional, com seu diálogo com Euclides da Cunha, José Lins do Rego e Guimarães Rosa, além da literatura popular em torno da Guerra de Canudos. É mais um exemplo da famosa recomendação de Tolstoi: se quer ser universal, cante a sua aldeia. A interpretação dos atores é contrastada, entre o método Stanislavsky de Geraldo del Rey e o distanciamento brechtiano de Othon Bastos. Um vive o vaqueiro Manuel em sua trajetória de compreensão do mundo, junto com sua mulher, Rosa (Yoná Magalhães). O outro, interpreta o cangaceiro Corisco, que sobreviveu a Lampião. Para quem não lembrava, a complexa figura de Antonio das Mortes (Mauricio do Valle) completava o mundo de paradoxos do sertão em transe. Antonio mata a serviço da Igreja e dos poderosos, incomodados com a presença de beatos e cangaceiros. Ao mesmo tempo, incomoda-se com a miséria e anuncia a "grande guerra do sertão", a guerra que acabaria com todas essas guerras menores de que participava. Pode-se entender como o anúncio da revolução. É o que também indica a famosa corrida final de Geraldo del Rey, que termina com imagens do mar. Na trama, o beato Sebastião (uma espécie de Antonio Conselheiro redivivo, interpretado por Lidio Silva) falava aos seguidores que um dia "o sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão".

Com todas essas arestas e complexidades, Deus e o Diabo é um filme a ser discutido e rediscutido até hoje. Como todo clássico, por definição jamais esgota a soma de suas interpretações possíveis. Estimula o pensar, e a sensibilidade, que não são termos antagônicos. Antes, se completam. O filme provoca uma funda emoção, em especial se lembrarmos que, embora situado historicamente no final dos anos 1930 (Lampião morre em 1938, anunciando o filme do ciclo do cangaço), refere-se ao país em transe do início dos anos 1960. Com suas contradições sociais não resolvidas e a esperança de transformações sociais que iriam bater no muro de pedra do golpe de Estado de março de 1964, ano de lançamento do filme.

Não poderia haver melhor abertura para um festival que coloca o foco sobre o cinema de invenção. Brasília prossegue até dia 23, quando serão distribuídos os prêmios da sua mostra competitiva. No encerramento, haverá a projeção de outro grande clássico do cinema brasileiro, em cópia restaurada - Cabra Marcado para Morrer, de Eduardo Coutinho, o grande documentarista morto em fevereiro deste ano. Espera-se apenas que os filmes que disputam os prêmios estejam à altura das obras de abertura e fechamento desta edição histórica.

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Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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