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Opinião|Diário de Brasília 2014. A dissolução do Brasil

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BRASÍLIA - Quem esperava surpresa não saiu decepcionado do Cine Brasilia. Brasil S/A, de Marcelo Pedroso, o segundo concorrente da mostra principal do festival do Distrito Federal, desarma expectativas e produz imagens (e sonoridades) inesperadas o tempo todo.

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Primeiro, por ser um longa sem um único diálogo, vale-se apenas de sons e imagens para construir sua dimensão estética e crítica. Depois, por apresentar em tom operístico uma visão distópica do capitalismo predador à brasileira.

Assim, vemos máquinas substituindo o homem nas lavouras e inchando as cidades de migrantes. Figurantes de maracatu que dançam valsas e minuetos. Os prédios que vão subindo, desordenadamente, e acabando com a paisagem. Carros entupindo as ruas, a ponto de terem de ser rebocados por um caminhão-cegonha. Uma modelo de biquíni rege a estranha dança de escavadeiras, enquanto o pavilhão nacional, com um buraco no meio, plana sobre a paisagem desolada do mar de edifícios de quarenta andares. Um grupo de fiéis entra em transe místico enquanto se ouve The Sound of Silence, da dupla Simon & Garfunkel.

Brasil S/A é uma vasta e brilhante metáfora da devastação imposta ao país entregue a esse crescimento sem alma que passa por progresso. Talvez um pouco brilhante demais, mas esta é outra história. Em entrevista, Pedroso admite o diálogo com cineastas como o palestino Elia Souleiman, o soviético Dziga Vertov e o brasileiro Luis Sérgio Person, que, em 1965, dirigiu um filme chamado São Paulo S/A.

"As ideias para Brasil S/A começaram a surgir durante o segundo governo Lula, quando o país parecia afinal encaminhado para o seu destino de potência. A crise mundial era chamada pelo presidente de 'marolinha'e o país crescia a ritmo chinês". O paralelo deve ser feito com o filme de Person, que surge na esteira do grande processo de industrialização do governo JK, cuja cereja do bolo era a criação da indústria automobilística em São Paulo. "O Brasil tem sempre essas ondas messiânicas periódicas, sobre o grande destino que está afinal chegando". Tanto no filme de 1965, como no de 2014, as mazelas trazidas pela aceleração econômica são postas bem à vista de todos.

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Como seu antecessor, Brasil S/A é um filme-sintoma, porém de repercussão política bem diferente. "Não acredito mais que o cineasta possa assumir aquela posição de quem detém a verdade e a ensina a espectadores supostos ignorantes ou aliados", diz. "Hoje, acho que a nossa tarefa é menos de conscientizar e mais de deslocar significados, colocá-los em sua situação de absurdo, de modo que o que é visto como natural apareça em toda a sua estranheza".

É construída desse modo uma das cenas mais hilárias, a do caminhão-cegonha. Uma moça sai com seu carro do prédio e já é colhida por um gigantesco engarrafamento de trânsito. Aciona pelo celular o serviço do caminhão-cegonha, que reboca os automóveis presos pelo trânsito da cidade e transporta os passageiros, em seus próprios carros, para onde eles desejam ir. "É uma espécie de utopia da classe média. Eles usam um transporte coletivo sem abandonar a privacidade do seu automóvel particular. Acho que vou patentear o invento", ri o diretor.

O filme, de fato, oscila entre o tom solene de algumas sequências, e outras divertidas, absurdas ou francamente cômicas. A música, às vezes grandiloquente, acompanha o movimento de máquinas (escavadeiras, em especial) que assumem dimensões animais, ou mesmo humanas. Uma paródia de Transformers, que, em si, já são uma paródia da humanização das máquinas. Por sua própria natureza, em especial a de não incluir discursos verbais, Brasil S/A coloca-se como obra aberta, no sentido de prestar-se a inúmeras interpretações. Mas sua vocação crítica é bem explícita.

Curtas. Os dois curtas da noite também fizeram boa figura. Sem Coração (PE), de Nara Normande e Tião, fala da iniciação sexual de garotos com uma menina do local. Crônicas de uma Cidade Inventada (DF), de Luíza Caetano, mostra uma Brasília multifacetada, muito mais rica e complexa do que supõe o estereótipo acomodado que a classifica como terra de funcionários e políticos corruptos. Através de personagens reais e outros interpretados por atores, o mostra Brasília tal como as grandes metrópoles do País - caótica, estressada, multiforme ... e humana, demasiado humana.

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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