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Cinema, cultura & afins

Opinião|Diário da Mostra 2011: Jafar Panahi e seu não filme

Quando René Magritte batiza o retrato de um cachimbo de Ceci n'Est pas une Pipe está nos lembrando da distinção entre pintura e aquilo que ela representa. Quando um cineasta chama seu filme de Isto não É um Filme pode estar pensando em coisa semelhante. Mas provavelmente está indo além dessa sutil diferença de ordem filosófica e ajuntando um comentário político à obra. Em especial se o cineasta for o iraniano Jafar Panahi, submetido a uma sentença abusiva que o impede de deixar o país, fazer filmes por 20 anos e o condenou, no início da pena, à prisão domiciliar em sua casa de Teerã.

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

Impedido de filmar e de deixar sua casa, Panahi convida seu amigo, o também cineasta Mojtaba Mirtahmasb, para rodar imagens na residência, tendo ele, Panahi, como ator de si mesmo. "Estou proibido de filmar, não de atuar", diz o diretor de obras tão fundamentais como O Espelho, O Balão Branco, Ouro Carmim e O Círculo (vencedor do Leão de Ouro no Festival de Veneza de 2000).

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Isto não É um Filme é coassinado pelos dois. Passou em Cannes e reza a lenda que atravessou a fronteira iraniana no interior de um pen drive, enfiado dentro de um bolo. Foi exibido também em Veneza, onde deveria ser acompanhado por Mojtaba Mirtahmasb. Mas este, como se poderia prever, foi impedido de viajar pelas autoridades iranianas. Cercado de todas essas contingências, Isto não É um Filme se afirma como um ato político de resistência ao autoritarismo.

No comentário sobre um trabalho de resistência, não se pode omitir o "crime" supostamente cometido por seu autor. Panahi foi acusado de tentar fazer um filme sobre o movimento de revolta desencadeado por ocasião das eleições presidenciais de 2009, pleito que elegeu Mahmoud Ahmadinejad, e que, desconfia-se com boa razão, não seria exatamente um modelo de correção democrática. Seus advogados tentam, até agora em vão, apelar da sentença.

Aliás, uma das longas cenas de Isto não É um Filme registra Panahi falando ao telefone com sua advogada. Ouvimos o que ele diz e as notícias não parecem boas, nem muito esperançosas. Pode-se esperar, talvez, uma redução da pena, nunca uma absolvição. Panahi desculpa-se pelo trabalha que está dando à advogada.

Nessa espera forçada, é preciso viver. Para um artista, viver é criar. E Panahi o faz no espaço restrito a que se vê confinado. Um cineasta precisa da rua e isso ele não tem. Mas tem janelas que se abrem para o exterior. E que deixam filtrar os ruídos que vêm das ruas de Teerã. A vida palpita lá fora. Dentro, ele pode escutá-la, comentá-la e registrá-la através da câmera do seu amigo Mirtahmasb e da própria câmera do seu telefone celular.

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Como não pode filmar, Panahi imagina o filme que faria (em entrevista dada a um correspondente do jornal italiano La Repubblica disse que tem três roteiros prontos). Marca no chão da sala, com fitas adesivas, o espaço de filmagem dessa película imaginária. Fala dos personagens, dos diálogos, dos deslocamentos da câmera e do sentido desse filme virtual. Teoriza e fala desse filme que agora não pode fazer e que, caso a sentença seja confirmada, não poderá realizar pelos próximos 20 anos.

Explora também o ambiente da casa e deixa a estranheza penetrar nesse testemunho. Por exemplo, pelos passeios da enorme iguana que habita o apartamento e sobe pelas estantes dos livros, acomoda-se no sofá e trepa nas costas do cineasta. Em DVD, imiscuem-se cenas de trabalhos anteriores de Panahi, do seu segundo longa-metragem, O Espelho (1997), no qual uma menina com o braço engessado volta sozinha da escola para casa. Veem-se os divertidos (e significativos) bastidores da filmagem, quando a garota tira do braço o gesso falso e decide que não irá mais filmar. Panahi ri e disse que ele "também precisa aprender a tirar o seu gesso".

Há uma vizinha que insiste para que ele tome conta de um insuportável cachorrinho enquanto ela sai para fazer qualquer coisa. E, sim, há o saboroso diálogo entre Panahi e o rapaz que vem recolher o lixo dos apartamentos. Tudo isso terá acontecido por acaso ou terá sido parte da encenação urdida por Panahi e o codiretor Mirtahmasb? Não sabemos. No fundo pouco importa, porque aqui estamos na dimensão desse cinema iraniano que, com Kiarostami, Makhmalbaf, Panahi e outros, tão bem trabalha o fino limite entre a realidade e encenação.

De qualquer forma, é conversando com o rapaz do lixo que Panahi sai pela primeira vez dos limites do seu apartamento, desce ao térreo e vislumbra a rua. Descobre, então, o que são os estranhos estampidos ouvidos através de sua janela e que o inquietavam. Mas não pode ir além dos limites do muro do edifício.

Há muitas maneiras de se ver esse "não filme" de Panahi. Ele é um protesto sutil contra a sentença emitida por um regime autoritário. Dessa forma, é um documentário preciso sobre a liberdade de expressão, seu valor e sua ausência. Também é a forma que o artista encontra de exercer, da maneira como pode, o pouco de liberdade de que dispõe. Mesmo encarcerado e cerceado, o cineasta exercita sua imaginação. Filma mentalmente os filmes que não pode fazer. E registra tudo isso nesse filme que espertamente se nega como tal, mas que é, no final das contas, o filme que vemos na tela e nos comove.

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(Publicado no Caderno 2)

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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