Foto do(a) blog

Cinema, cultura & afins

Opinião|Bola de Nieve: na alegria e na tristeza

PUBLICIDADE

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

 

Em 1911 nasce em Guanabacoa, Cuba, um fenômeno chamado Ignácio Villa. Poucos o conhecem por esse nome. Mas se você falar em Bola de Nieve, os que amam a música abrirão um sorriso de reconhecimento. Bola é nome universal, com livre trânsito entre os admiradores da melhor música feita no século 20. Bola de Nieve é o personagem do belo documentário do cineasta espanhol José Sánchez-Montes, que lhe colocou subtítulo significativo - El Hombre Triste que Cantaba Alegre. O filme monta-se em torno dessa figura paradoxal, oscilante entre a alegria e a tristeza, que só pode ser compreendida por quem já ouviu, ou viu, Bola de Nieve atuar em um palco.

PUBLICIDADE

Não era apenas compositor, ou cantor, ou grande pianista. Era tudo isso e também ator, um intérprete que atuava com sua voz e piano magníficos, mas também com seu corpo, alma e sorriso imenso. É inigualável a dor que imprime a uma canção como Vete de Mi (Hermanos Exposito) ou No Puedo Ser Feliz (Adolfo Gusmán); ou a pungência em Drume, Negrita (Emilio Grenet), o tom brejeiro em La Flor de la Canela, de sua amiga peruana Chabuca Granda, ou a dramaticidade em Babalu (Margarita Lecuona). Com seus recursos, Bola proporcionava ao ouvinte uma experiência musical completa, criava um magnetismo com a plateia, um envolvimento emocional com o público que o transformou em ídolo em muitos países.

Ignácio teve de fazer boa parte de sua carreira no exterior, pois na Cuba dos anos 1930, quando começa a se destacar como acompanhante da cantora Rita Montaner, a situação não era das mais fáceis para músicos negros. Ao viajar, Bola se fez reconhecer na Argentina, México, Venezuela e em diversos países. Quando em 1959 a ditadura de Batista foi derrubada, ele manifestou apoio à revolução dos barbudos. Tornou então a viajar, mas já na condição de representante do regime socialista. Cuba estava na moda, Bola foi aplaudido na Europa e levou sua arte até a ex-União Soviética.

Era então um artista internacional (hoje se diria global), porta-voz de uma Cuba que também se queria universal e farol dos povos explorados do Terceiro Mundo. Cantava não apenas as músicas do seu repertório latino e afro-cubano, mas nele incluía hits mundiais como La Vie en Rose, da francesa Edith Piaf, ou Os Quindins de Iaiá, do nosso Ari Barroso.

Bola foi também compositor de mão cheia e chegou a gravar um disco inteiro com músicas de sua autoria - Bola de Nieve interpreta Ignácio Villa (Egrem). Mas o documentário traz um episódio interessante, e dramático. Conta que trabalhou longamente numa canção nova e, quando a terminou, percebeu que se tratava de um plágio de Ernesto Lecuona. Rasgou a partitura e jurou: "Nunca mais volto a compor". E, de fato, deu por encerrada a carreira de compositor.

Publicidade

Neruda e Segovia. Por sorte, a de intérprete prosseguiu em alto nível até a sua morte, em 1971. Bola morreu numa excursão ao México e seu corpo foi repatriado a Cuba para ser enterrado em sua cidade natal. Havana, comovida, parou para recebê-lo. Quem fez a oração fúnebre foi o poeta Nicolás Guillén, admirador e amigo de toda a vida. Amigos famosos, ele os teve às dúzias, do poeta chileno Pablo Neruda ao violonista espanhol Andrés Segovia.

Negro, nascido pobre, homossexual, pró-revolucionário, adepto da Santería, uma variante de candomblé cubano -- eis aí a figura heterodoxa de um grande artista. Bola de Nieve - O Homem Triste que Cantava Alegre traz as poucas imagens em movimento que sobreviveram. São 12 minutos suficientes para mostrar o calor da sua presença física num filme entremeado por depoimentos de artistas, parentes e conterrâneos. Sem ser inovador, o documentário é informativo o suficiente para dar ideia de quem foi Bola a quem não o conhece. E emocionar aqueles que já fazem parte da seita. Sim, porque Bola de Nieve, quase 40 anos depois de sua morte, tem ainda uma legião de fiéis seguidores, uma religião laica devotada à sua música e figura.

(Caderno 2, 27/3/10)

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.