A declaração é estratégica, pois nega o naturalismo da divisão entre ricos e pobres e afirma que esta se dá por razões históricas e culturais. Ou seja, contingentes. Na simplicidade do depoimento é a negativa sobre o que já se chamou de "ordem natural das coisas" que está em em foco. O discurso não se dá no vazio; enraíza-se num tempo histórico determinado. Em outra ocasião, um dos personagens faz o elogio do governo Lula (então em plena vigência), de acordo com ele "o único que recebeu gente como eu em palácio e ouviu o que tínhamos a dizer." O homem não diz que é lulista, ou petista, ou de esquerda, ou social-democrata. Apenas que foi ouvido, o que é uma grande coisa para ele.
Além dos depoimentos importantes, há um momento cinematográfico de relevância, porque, sendo esteticamente belo, não cai no vazio formalista, mas propõe significados precisos. Evocando o cinema soviético, e o de Dziga Vertov em particular, as imagens expõem o percurso do material a ser reciclado na fábrica até que se ele transforme em bobinas de papel, prontas a serem utilizadas na indústria. A sequencia é alucinante, tanto visual quanto auditivamente.
Nela está a ideia geral do filme: mostrar os protagonistas da reciclagem, os catadores, como a ponta explorada de um grande negócio, que gera bilhões de reais. É um pouco como lançar o olhar ao interior do mecanismo de funcionamento da sociedade. Esse mecanismo que às vezes se manifesta sob a alternância das figuras da miséria e da opulência, ou dos discursos queixosos ou demagógicos. O cinema, quando bom, vislumbra a estrutura profunda.
(Caderno 2)