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Opinião|50 anos da Palma de Ouro a O Pagador de Promessas

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

Há exatos 50 anos o Brasil ganhava sua primeira - e até agora única - Palma de Ouro em Cannes. O principal prêmio, do mais badalado festival de cinema do mundo, foi atribuído a O Pagador de Promessas, de Anselmo Duarte, em 1962.

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Há fotos da equipe do filme chegando ao Brasil que parecem imagens da seleção brasileira voltando de uma conquista de Copa do Mundo. As imagens provam que o prêmio, até hoje o mais importante recebido por uma produção brasileira, produziram grande emoção nas pessoas.

Sentimento justificado pois a distinção conferida ao filme significava também o reconhecimento de um país jovem, que aspirava à projeção internacional. Naquela época, o Brasil desenvolvia uma atividade artística das mais significativas, com inovações na música (a bossa nova), no teatro, nas artes plásticas e no cinema. Era o momento em que nascia o Cinema Novo, o até hoje mais respeitado movimento cinematográfico do País, projetando nomes como osde Nelson Pereira dos Santos (o mais velho, patrono de todos e precursor), Cacá Diegues, Joaquim Pedro de Andrade, Leon Hirszman, e, em especial, Glauber Rocha, o mais inventivo, o mais provocador, o mais falastrão.

É, talvez, uma ironia que a Palma de Ouro tenha caído no colo de alguém que pouco tinha a ver com as novas ideias cinematográficas do País. Anselmo era um galã, vindo das chanchadas e dos estúdios da Vera Cruz, que já havia dirigido um filme interessante, Absolutamente Certo, em 1957. Encantou-se com a peça de Dias Gomes na qual se conta a história de um sertanejo, Zé do Burro, que tenta entrar numa igreja católica para pagar uma promessa feita num terreiro de candomblé a Santa Bárbara para salvar seu animal de carga, atingido por um raio. Graça alcançada, Zé do Burro carrega uma cruz nas costas para saldar a dívida com a santa. Mas o padre não permite a entrada. Essa negativa cria o impasse que dá o tom da narrativa.

Magnificamente interpretado por Leonardo Villar, Zé do Burro, com sua teimosia radical, conquistou Cannes de alguma maneira, ainda hoje um tanto misteriosa. Encenava o conflito entre a religiosidade popular e a religião oficial, mas também dramatizava a contradição muito aguda entre o Brasil real, pobre e explorado, e o Brasil oficial, representado na figura da Igreja católica. A visão desse Brasil de industrialização incipiente era filtrada pelo olhar do comunista Dias Gomes, autor da peça, um agudo observador da realidade nacional e escritor talentosíssimo.

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Para levar esse texto à tela, Anselmo usou uma dramaturgia clássica que pouco tinha a ver com as inovações formais preconizadas e testadas por Glauber & Cia. Valeu-se, além do ótimo intérprete principal, e de um elenco afinado, com Gloria Menezes e Norma Bengell, do excelente fotógrafo inglês Chick Fowle, trazido ao Brasil pela Companhia Cinematográfica Vera Cruz. O Pagador de Promessas mostrava, então, um padrão de qualidade técnica que não poderia ser menosprezado pelos europeus.

Tinha, além disso, um ar charmoso de Terceiro Mundo, que estava entrando na moda na parada de sucessos da intelligentsia internacional. O Brasil já era visto como país promissor, cheio de contradições sociais, que começavam a ganhar expressão artística através de seus criadores. Estávamos ainda nos anos de ouro da década de 1960 e a ditadura não havia chegado, assim como as grandes obras do Cinema Novo - Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, Os Fuzis, de Ruy Guerra e Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos - que estavam em fase de gestação.

Disso tudo se beneficiou Anselmo Duarte, e seu produtor Oswaldo Massaini, para conquistarem a ambicionada Palma de Ouro - troféu que, mais tarde, foi morar na estante do diretor em Salto, no interior de São Paulo, sua terra natal.

Prêmios são assim. Às vezes, além do mérito intrínseco da obra, aproveitam-se de circunstâncias várias, como os ares de um determinado momento histórico, divisões internas do júri, simpatias ou antipatias. Seja como for, O Pagador de Promessas impôs-se a um júri que tinha François Truffaut entre seus integrantes, e concorria com filmes como O Anjo Exterminador, de Luis Buñuel, O Eclipse, de Michelangelo Antonioni, e Joana D'Arc, de Robert Bresson, hoje tidos como obras-primas indiscutidas do cinema mundial.

Depois disso, o Brasil voltou várias vezes aos mais importantes festivais do mundo, inclusive com as obras consideradas máximas do Cinema Novo. Que foram reconhecidas e premiadas, mas não com a Palma de Ouro. Já faturamos dois Ursos de Ouro no concorrente de Cannes, o Festival de Berlim, mas, por enquanto, a única Palma de Ouro brasileira continua a ser aquela de Anselmo Duarte (1920-2009) e seu teimoso Zé do Burro, vivido pelo grande Leo Villar.

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Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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