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O andar do economista bêbado

Rent-seeking e o jogador de 100 milhões de euros

Por Luciano Sobral
Atualização:

A grande notícia desta temporada de transferências no futebol europeu foi a venda do galês Gareth Bale do Tottenham para o Real Madrid por alegados 100 milhões de euros. Não vou tentar discutir aqui quantos Neymares deve valer Bale, mas sim alguns aspectos econômicos por trás do negócio (e já peço desculpas ao vizinho Roberto de Lira por roubar um potencial assunto dele).

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Primeiro, o que determina o preço de um jogador? Se considerarmos que o atleta é um ativo do clube onde atua, seu preço poderia ser estimado como o de uma ação ou título de renda fixa, trazendo a valor presente toda receita estimada que ele trará ao clube durante sua passagem. Porém, contar com isso é arriscado: para cada Cristiano Ronaldo, que no primeiro ano em Madri vendeu 1,2 milhão de camisas só na cidade e ajudou a arrecadar estimados 120 milhões de euros, existem tantos outros Ibrahimovics ou Fernandos Torres, que passaram longe de justificar o valor dos seus passes quando foram transferidos, respectivamente, para Barcelona e Chelsea.

Simon Kuper, coautor de Soccernomics, escreveu no Financial Times que o mercado do futebol tem se assemelhado ao de artes: compra-se por glória e status, com qualquer racional econômico ficando em segundo plano. Bale é um Picasso para Florentino Pérez, o presidente do Real Madrid, diz Kuper. E, a despeito de toda "profissionalização" recente, futebol não é um negócio: não visa lucros, visa vitórias; os clubes não são empresas, são parte da identidade cultural das cidades e países que representam.

O lado menos poético do mercado de jogadores é que essa condição especial dos times faz deles instrumentos ideais para negociatas, lavagem de dinheiro e captura disfarçada de recursos públicos pelos "empresários da bola" (esta uma definição do que é conhecido na linguagem econômica como rent-seeking, que os acadêmicos me perdoem pelo simplismo). Uma edição recente da The Economist compilou várias maneiras de como isso acontece: desvio de dinheiro de bilheteria, manipulação do número de torcedores que vão ao estádio, inflação nos valores das transferências de jogadores, partidas arranjadas para beneficiar apostadores conhecidos... O repertório é amplo e crescente.

O rent-seeking dá-se pela virtual inimputabilidade dos clubes--é impossível imaginar que o Real Madrid, o Milan, o Corinthians ou qualquer outro grande time vá à falência e seja executado por suas dívidas. O próprio Real Madrid, segundo um levantamento da Universidade de Barcelona, tem cerca de 590 milhões de euros em dívidas (desnecessário contrastar a exuberância dos clubes com a situação econômica do país). Por aqui, os 20 maiores clubes brasileiros devem cerca de R$ 4 bilhões em impostos e depósitos no FGTS atrasados, e o Ministério do Esporte vem acenando com a ideia de, por meio de uma Medida Provisória, perdoar boa parte desse valor. Como esse buraco na arrecadação tem que ser coberto pelos demais contribuintes, estamos assistindo a uma enorme transferência de dinheiro da população, sem ser consultada, para jogadores, dirigentes e técnicos milionários.

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Se o futebol de fato merece tratamento de bem público (outra longa discussão), suas contas devem ser abertas para poderem ser analisadas com o mesmo rigor usado para criticar despesas públicas e política fiscal. A possibilidade de, no Brasil, as dívidas dos clubes serem apagadas sem grandes contrapartidas (apenas um vago compromisso de "manter projetos sociais") e transações opacas como a que envolveu Bale mostram como estamos distantes desse ideal.

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