Oficina de criação

Clubes de interessados em eletrônica começam a crescer no Brasil, difundindo cultura de montar (e desmontar) coisas

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Por Murilo Roncolato
Atualização:

Clubes de interessados em eletrônica começam a crescer no Brasil, difundindo cultura de montar (e desmontar) coisas

SÃO PAULO – Felipe Sanches era mais um entre os jovens estudantes de engenharia da Universidade de São Paulo (USP). E o privilégio de estudar na universidade mais bem conceituada do País virou uma decepção. As aulas o desmotivavam e havia muita burocracia para usar os laboratórios. Ele já considerava abandonar a graduação. Um dia, um professor o impediu de continuar seu projeto de desenvolver uma máquina de pinball completa: “Aqui a gente não faz brinquedo!”, lhe disse o professor. Foi a gota d’água.

 

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Felipe largou o curso, viajou para os Estados Unidos e, em São Francisco, conheceu um espaço cheio de pessoas usando equipamentos típicos de oficinas ou fábricas, destruindo e criando todo tipo de coisa.

Era o Noisebridge, um dos principais grupos do mundo que reúne interessados em eletrônica e programação – conhecidos como hackerspaces. “Quando vi aquilo, pensei: ‘Isso é tudo o que a USP não é’. No hackerspace, o modelo é anárquico e ninguém precisa de autorização para fazer as coisas”, relata.

Sanches, hoje com 28 anos, passou ainda pela Europa e, no fim, havia conhecido 15 lugares como aquele. Quis trazer a ideia para o Brasil. Meses depois, nascia o Garoa Hacker Clube, o primeiro hackerspace do Brasil, inspirando outras duas dezenas de grupos que surgiriam depois.

Hackerspaces, literalmente, são espaços hackers. Na prática, funcionam como um local independente que oferece todo tipo de equipamento – de mecânica, eletrônica e marcenaria. Associados pagam periodicamente uma taxa para usar livremente o espaço. O local pode ser uma garagem no Rio de Janeiro ou um enorme galpão do meio de Viena, na Áustria. Há hackerspaces com quatro membros, como o Fundação.cc, da zona leste de São Paulo, e outros com cerca de 450 associados, caso do C-base, de Berlim, inaugurado em 1995.

O C-base começou com sete pessoas, em um cômodo decorado com elementos de ficção científica de um flat alugado. Dez anos depois, eles se mudaram para um espaço com pouco mais de 700 m² que imita uma nave espacial, com um grande salão para eventos, um bar (que ajuda a equilibrar as contas), além de um espaço externo para churrascos. Eles também organizam desde aulas e exposições de arte a festas à fantasia.

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O porta-voz do C-base, que prefere se identificar pelo seu apelido E-punc, se diz feliz por ver o “movimento hackerspace” crescer, principalmente no Brasil. Ele manda uma mensagem para quem quer se aventurar na área: “Sejam compatíveis com o futuro, encontrem algumas pessoas legais, uma sala e comecem! Deem a todos a chance de se tornar parte disso, é uma experiência social, por isso esperem se deparar com gente estranha com ideias esquisitas, assim como outras bem educadas, geniais e com objetivos claros.”

 

Evolução. Hackerspaces podem ser vistos como uma evolução dos antigos grupos de “makers” (criadores) ou “hobbistas”, gente que construía coisas por pura diversão. Um desses grupos ficou famoso por ter tido Steve Jobs e Bill Gates entre seus frequentadores, o Homebrew Computer Club. O avanço da informática e a circulação de publicações como Phrack, de 1985, e 2600, de 1984, fez com que “receitas” técnicas se espalhassem, acelerando uma ideia de compartilhamento de conhecimento “hacker” que chegaria ao seu auge com a internet.

Daniel Quadros, de 53 anos, acompanhou essa história. Engenheiro eletrônico de formação, começou a frequentar alguns encontros na Escola Politécnica da USP que acabaram dando origem ao Garoa, do qual faz parte desde a fundação. “Antes era comum as pessoas fazerem coisas em casa. Depois a indústria começou a fornecer aparelhos domésticos por um preço menor e, com isso, diminuiu o número de ‘hobbistas’”, diz ele. “Mas esse gosto está voltando. Às vezes não fica tão bonito quanto o (eletrônico) da fábrica, mas foi a gente que fez.”

Dado Sutter, engenheiro de 52 anos, está à frente de dois hackerspaces no Rio de Janeiro. Ou melhor, dois “makerspaces”. É um termo ainda novo lá fora, usado para diferenciar espaços de gente que trabalha com software, com os de quem constrói outras coisas. “Agora, se é hacker ou maker, no fundo não interessa. A verdade é que é muito difícil fazer qualquer um desses funcionar no Brasil”, diz. “As pessoas ficam tentando organizar demais, falta gente para arrumar um lugar, juntar pessoas comprometidas e fazer a coisa acontecer”.

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Em alguns casos, a palavra “maker” é usada para contornar o preconceito que ainda acompanha o termo “hacker”.

No livro Hack This (Que Publishing, 2011, inédito no Brasil), Emmanuel Goldstein, editor da revista 2600 dá a sua versão do conceito: “Um hacker é simplesmente alguém que mexe em coisas. Não tem de ter um computador. Nem tem de ser relacionado à tecnologia. Um hacker é alguém que contorna obstáculos, que não aceita não como resposta, faz inúmeras perguntas e acredita em compartilhar a informação que descobre.”

“Hackerspace é um termo político”, diz Felipe Sanches. “Por trás, está a ideia da apropriação tecnológica, da busca pela liberdade do conhecimento, das pessoas que estão cansadas de tecnologia caixa-preta.”

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Alguns hackerspaces levam seu posicionamento político a fundo. Um exemplo é o Le Loop, espaço em Paris que ajuda ativistas na Síria a se manter online e a se comunicar anonimamente. Outro grupo do tipo é a Gemsi, organização que instala hackerspaces em países como Líbano e Iraque.

“Hackerspace é a bandeira que expressa a vontade obsessiva de entender como as coisas funcionam e como construir outras ainda mais legais a partir dela”, diz Sanches.

 
 
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