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"Cartel é crime continuado para as empresas, mas não necessariamente para executivos", diz ex-conselheiro do Cade

Olavo Chinaglia afirma que fatiamento das denúncias criminais contra os executivos é estratégia inadequada

Por Mateus Coutinho
Atualização:

por Fernando Gallo

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Via de regra, a prática de cartel é continuada, sobretudo em licitações públicas. Nestes casos, o marco da prescrição deste crime não deveria ser a data da licitação, mas o acordo de leniência ou a operação de busca e apreensão. Esse entendimento, contudo, vale para as empresas (pessoas jurídicas), e não para os executivos (pessoas físicas), já que, um destes pode, por exemplo, participar de conluio a um contrato apenas, e deixar a empresa logo na sequência. Neste caso, seu crime seria instantâneo, ainda que o da empresa fosse permanente.

Quem faz essas avaliações é o advogado Olavo Chinaglia, ex-conselheiro do Conselho de Administração de Defesa Econômica (CADE), órgão antitruste do governo federal.

Chinaglia é sócio da área de concorrência do Veirano Advogados.

ESTADO: Há um embate de teses jurídicas que começa a ser travado nos tribunais sobre a prescrição do crime de cartel. O Ministério Público afirma tratar-se de crime permanente, enquanto alguns juízes têm entendido tratar-se de crime instantâneo, o que mudaria o marco da prescrição. Qual a sua avaliação?

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OLAVO CHINAGLIA: Há toda uma discussão, que não é restrita o Brasil, sobre se o cartel deve ser considerado uma infração por si só, independente de seus efeitos, por causa do caráter desleal, ou se não, se é importante que só seja submetido a sanções se tiver de fato um potencial de causar danos ao mercado, seja dominar mercados, praticar preços anticompetitivos, extrair renda do consumidor e tudo o mais. Nesse contexto, a infração consistente num cartel pode ter como escopo tanto um contrato específico, uma situação episódica, e consequentemente o cartel se exaure no instante da contratação, ou pode ser uma prática continuada. Pode ser um acordo permanente que vai produzir efeitos conforme os contratos venham a ser celebrados. O mais freqüente é a segunda situação. Quando os concorrentes combinam um determinado jogo entre si, o mais comum é que eles façam isso de maneira reiterada para que todos tenham a oportunidade de ganhar, cada um em um momento. Em cartel de licitação, em particular, é muito mais freqüente que seja assim. Mas, em tese, as duas situações podem existir.

ESTADO: E no caso do cartel de trens?

CHINAGLIA: A questão de saber se houve prescrição ou não no caso do cartel do Metrô depende do que for apurado nos autos. Se há algum tipo de evidência de que o acordo foi pontual e teve como objeto uma licitação apenas, um contrato em particular, então a princípio a prescrição deveria ter sido contada a partir do momento em que o cartel tivesse se exaurido. Mas se, pelo contrário, existirem evidências de que aquele acordo é continuado, que se manifestou em diversas ocasiões, aí o prazo de prescrição deveria ser contado a partir do momento em que ficou comprovada a interrupção do ajuste. E aí, na falta de uma prova mais direta, o momento da celebração do acordo de leniência, por exemplo, poderia ser considerado o termo inicial do prazo de prescrição.

ESTADO: Ou eventualmente a operação de busca e apreensão...

CHINAGLIA: Ou a busca e apreensão, isso é até mais preciso. A partir desse momento o cartel teria que ter se desarticulado. O termo inicial da prescrição é o momento em que a prática se interrompe ou o momento em que ela se torna conhecida. No caso concreto, tenho a impressão de que essa discussão é irrelevante porque qualquer que fosse o marco, a prescrição não teria ocorrido. Quando um desses juízes reconheceu prescrição em relação a alguns executivos, estava entendendo que o cartel se consumava de forma imediata. Isso, em tese, pode acontecer. Da mesma forma que pode ser um ajuste permanente ou continuado. O fato de o cartel se manifestar em um contrato, depois se manifestar em outro, e depois em outro, seria um indicativo de que é uma prática continuada. Mas só faria sentido cogitar de uma infração instantânea se ficasse comprovado que atuou em apenas um contrato.

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 Foto: Daniel Teixeira/Estadão

ESTADO: A estratégia do Ministério Público foi fatiar o caso e oferecer 5 denúncias criminais, uma para cada contrato, alegando economia processual e celeridade. A Promotoria avalia que, houvesse apenas uma única denúncia, haveria, muitas partes, recursos infinitos, e aí efetivamente ocorreria o risco maior de prescrição. Essa estratégia de denunciar por contrato pode fazer o juiz entender que o cartel só ocorreu naquele contrato específico e não em uma situação mais ampla?

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CHINAGLIA: Quando estamos pensando nas empresas, tenho dificuldade de entender o cartel como uma prática momentânea, instantânea. Mas se você pensar nos indivíduos, é possível pensar que em relação a um determinado executivo de uma determinada empresa só tenha sido encontrada evidência de participação dele em um contrato. Aí a tese de que a prescrição teria se consumado ganha mais consistência.

ESTADO: Mas a Siemens denuncia seis contratos. Tudo indica que é uma ação que não é episódica. Pela delação, o cartel perdurou por 10 anos. Pode ter sido até mais. Mas quando o promotor oferece uma denuncia para cada contrato, esta correndo o risco de o juiz analisar não à luz do acordo global, e sim do contrato específico...

CHINAGLIA: Exato. Com relação às empresas, sem conhecer o caso a fundo, não me causa surpresa. Com relação aos indivíduos, eles podem ter participado de um determinado evento, mas não dos outros. Independentemente de estarem certos ou errados, os juízes que indeferiram as denúncias, salvo detalhes que desconheço, tomaram uma decisão precipitada.

ESTADO: Por quê?

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CHINAGLIA: Quando o juiz declara a prescrição no inicio do processo, esta entendendo, de forma não explícita, que não existem provas de que a participação daqueles indivíduos tenha acontecido no curso da conduta. Mas o processo deveria ter uma fase de instrução justamente para se verificar se isso ocorreu. Conceitualmente, com todo o respeito, a presunção de que a infração de cartel se esgota na celebração de cada contrato... teríamos que falar não de um único cartel, mas de vários cartéis sucessivos, o que é juridicamente inconsistente. Não existe, na experiência das autoridades de defesa da concorrência no mundo, entendimento segundo o qual contratos sucessivamente celebrados, todos eles afetados por um conluio entre os concorrentes, devem ser considerados como vários cartéis. Na realidade, é uma coisa só. É um grande cartel que durou por um período estipulado. E aí as penalidades são calculadas, entre outras variáveis, em função da duração do cartel. Na União Europeia corresponde a um percentual da receita das empresas multiplicado pelo número de anos da duração do cartel. É uma indicação clara de que o cartel, em regra, é infração considerada como continuada.

ESTADO: O Ministério Público tem alegado que, mesmo que o cartel ocorresse em um contrato só, o crime é permanente porque as empresas continuam colhendo os benefícios daquela fraude ao longo de toda a vigência do contrato.

CHINAGLIA: Em relação às empresas, esse argumento é absolutamente pertinente, mas não necessariamente em relação aos indivíduos. Os executivos podem ter deixado a empresa logo depois da celebração dos contratos. Seria um fato a ser apurado no curso do processo. Daí porque considero que a decisão de reconhecer a prescrição desde logo é prematura. Ainda que depois viesse a ser confirmada pela instrução.

ESTADO: O fatiamento das denuncias criminais foi adequado? De um lado há a celeridade, de outro o juiz pode entender que aquele crime é episódico...

CHINAGLIA: Penso que tenha sido uma estratégia inadequada. A análise do cartel tem que ser feita pelo contexto global, e não pela situação episódica de um contrato ou outro. Há precedentes, inclusive na jurisprudência do Cade, de cartéis que operavam não por meio da combinação de preços pura e simplesmente, mas contemplavam também um rodízio das empresas vencedoras de cada certame. Se não se considerar o cenário como um todo, corre-se o risco de não se conseguir provar que houve fraude.

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