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A internet no banco dos réus

Seja você mesmo

Por muito tempo, possibilidade de ser quem você quisesse na rede foi confundida com o anonimato completo; entenda como a criminalização do anonimato conflita com a liberdade de expressão

Por Mariana Giorgetti Valente
Atualização:

por Dennys Antonialli, Francisco Brito Cruz e Mariana Giorgetti Valente

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Quem é da época das salas de bate-papo deve lembrar-se dos apelidos curiosos que muitas pessoas escolhiam para se identificar. Nome, características físicas, dados de idade e localização, tudo poderia fazer parte do seu nick. E nem tudo precisava ser verdade. Ser o que você quisesse ser era parte da interação.

Por muito tempo, essa possibilidade de ser quem você quisesse na rede foi confundida com o anonimato completo. "Na Internet, ninguém sabe que você é um cachorro", dizia a famosa charge de Peter Steiner, de 1993, que retratava um cachorro por detrás da tela. Hoje, já se sabe que, de uma forma geral, ninguém é anônimo na rede (há tecnologias anonimizantes, mas pouco utilizadas pelo usuário médio). Nossas atividades deixam rastros que, mais tarde, podem revelar nossa identidade real.

Mas o uso de identidades fictícias - ou de um "perfil fake" - passou a fazer parte da experiência na Internet. Quase todos os dias, encontramos um perfil que não parece uma pessoa real - o que é diferente do caso de uso de pseudônimos, abreviação de nomes ou ainda uso de nome social. Mesmo comum, a prática é às vezes estigmatizada: para que uma pessoa "bem intencionada" precisaria se esconder por detrás de uma máscara? Será que existiriam razões legítimas para alguém se passar por outra pessoa?

 Foto: Estadão

O caso pode ficar ainda mais complicado se envolver uma empresa. Em decisão recente, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo acolheu o pedido de um restaurante de Campinas, determinando que o Facebook retire do ar páginas não-oficiais do estabelecimento. O curioso é que a decisão sequer avalia o propósito das páginas: leva em consideração apenas que elas não são administradas pelo titular da marca.

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É verdade que a remoção de um perfil "fake" de uma marca pode ser bastante razoável. O registro de uma marca (um nome e um conjunto de sinais registrados pelo titular que distinguem um produto ou um serviço) confere ao seu dono uma série de garantias jurídicas que, indiretamente, funcionam como uma proteção ao consumidor. Ela impede que um concorrente confunda os consumidores do outro, seja para roubar clientes, seja para "sujar seu nome" intencionalmente.

De outro lado, existem casos em que a remoção não é a medida mais apropriada. A proteção da marca não pode ser um pretexto para coibir a liberdade de expressão. O uso satírico do nome de um serviço ou produto para crítica pode fazer parte do debate público.

Por exemplo, durante o grande vazamento de óleo em uma de suas plataformas no Caribe, a British Petroleum ganhou um fake seu no Twitter. O perfil zombava das respostas insuficientes providas pelo setor de relações da petroleira, responsável por um enorme desastre ambiental. No Brasil é famoso o caso dos irmãos Lino e Mário Bocchini, que criaram o site "Falha de São Paulo" para criticar o jornal "Folha de São Paulo". Há quatro anos os irmãos estão impedidos de manter o site com esse nome, a pedido judicial da Folha.

No caso das pessoas físicas, é possível pensar em alguém que queira denunciar uma série de malfeitos cometidos por uma figura poderosa na cidade. Ou em alguém que queira participar de fóruns de discussão para falar sobre uma condição sensível (como alcoolismo ou problemas de saúde). Ou ainda em alguém que esteja descobrindo sua sexualidade e queira estabelecer contato com outras pessoas, mas que ainda não esteja preparado para lidar com a questão abertamente. E até em humor: a Dilma Bolada não é a presidenta.

Esse tipo de manifestação corre até risco de ser proibida por completo. É que o Projeto de Lei n. 7758/14, proposto na Câmara dos Deputados, quer transformar em crime o uso de perfis falsos para determinados fins, dentre os quais "causar dano a alguém, em proveito próprio ou alheio". Parece que o objetivo da norma é proibir fakes criados com o objetivo de se beneficiar, prejudicando alguém. Ainda assim, sua redação pode dar margem a interpretações que impeçam manifestações legítimas. Além disso, as condutas que se quer coibir já são criminalizadas em outros dispositivos do direito penal.

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É claro que há interesse jurídico sobre o que ocorre na rede. No entanto, será muito complicado se legisladores e juízes não estiverem dispostos a captar as formas como as pessoas se apropriam da Internet e de suas potencialidades para a crítica e manifestação do pensamento. Corremos o risco de transformar a Web em um condomínio fechado, onde será necessário entregar documentos de identidade para entrar.

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