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Psiquiatria e sociedade

Opinião|Efeitos colaterais do amor

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Atualização:

"Eu não sou elitista, só acho que exitem dois grupos: nós e o resto", dizia o ímpar professor Juarez Montanaro, figura inesquecível para os que com ele estudaram medicina legal. A piada, como muitas outras, disfarça uma tendência comum a todo ser humano: julgar melhor os que são do "nosso grupo" (qualquer que seja ele) do que os que são de fora. Esse é um viés cognitivo chamado de viés intragrupo, e pode ser considerado um efeito colateral do amor. Isso mesmo, depois de tratarmos das belezas da occitocina e dos vínculos que ela ajuda a criar, vale a pena dar uma olhada num outro lado dessa história.

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Do ponto de vista evolutivo foi um desafio explicar por que somos altruístas - se os genes são selecionados na medida em que ajudam a perpetuar a si mesmos, como seria possível o sacrifício em favor dos outros? Isso aparentemente contradizia a seleção natural. Embora o próprio Darwin já tivesse discutido a questão, foi na década de 60 que o biólogo Willian D. Hamilton desenvolveu melhor o conceito que ficou conhecido como "seleção de parentesco". Segundo ele, quanto mais próximos forem os parentes, mais semelhantes serão suas cargas genéticas; assim, o sucesso reprodutivo não só de um indivíduo, mas também de sua família, seria favorecido pela evolução. Morrer por um filho, assim, embora impeça o sujeito de continuar passando adiante seus genes aumenta a chance de que seus descendentes o façam.

Fica claro que isso só tem sentido para relações próximas - biologicamente não há razão para ser altruísta com não-parentes. Agora, se lembrarmos que a occitocina fortalece os vínculos familiares, surge a pergunta: será que ela favoreceria o viés intragrupo? Ou seja: se biologicamente temos a tendência de nos sacrificarmos por parentes próximos, será que o efeito da occitocina poderia nos fazer mais prontos a agir em favor do nosso grupo, e não de grupos vistos como "outros"?

Parece que sim.

Estudando as atitudes de alunos holandeses com relação a mulçumanos e alemães, psicólogos descobriram que em cenários de um naufrágio, por exemplo, o uso de um spray de occitocina aumentava a chance de os voluntários salvarem um sujeito chamado Maarten (nome típico holandês), mas não alterava em nada sua tendência de salvar um Mohammed ou mesmo um Markus (nomes mulçumano e alemão, respectivamente). Da mesma forma, após uma dose de occitocina os sujeitos associavam com mais rapidez características positivas a holandeses e característcas negativas a mulçumanos e alemães. Os cientistas então sugerem que o etnocentrismo - favorecimento de seu grupo e não os outros - também tem raízes biológicas, e não apenas sócio-culturais.

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É desnecessário dizer que isso tudo não justifica o preconceito ou a discriminação. Nossa biologia nos impõe uma série enorme de tendências, impulsos e inclinações contra as quais lutamos em prol de vivermos numa sociedade civilizada - são só as bestas-feras que cedem irrestritamente aos chamados da natureza (ok, alguns humanos também o fazem - por isso os denominamos animais). Combater o preconceito e relembrar que ser "dos nossos" não faz ninguém melhor do que ser "dos outros" é uma tarefa contínua, como contínuo deve ser o esforço para apagar as próprias fronteiras entre "nós" e "eles".

Opinião por Daniel Martins de Barros

Professor colaborador do Dep. de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Autor do livro 'Rir é Preciso'

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