PUBLICIDADE

EXCLUSIVO PARA ASSINANTES
Foto do(a) coluna

Psiquiatria e sociedade

Opinião|Blue Jasmine - você, eu e Woody Allen

Foto do author Daniel Martins de Barros
Atualização:

A realidade é dura. A tal ponto que nós não a encaramos continuamente para valer - se enxergássemos a realidade nua e crua o tempo todo, quem aguentaria? Por isso vivemos de ajustar nosso olhar sobre ela, usando por vezes o enfrentamento do simplório, por outras a fuga do neurótico. Desse contraste vem a genialidade do novo filme de Woody Allen, Blue Jasmine, amplamente elogiado pela crítica.

PUBLICIDADE

O filme trata de duas irmãs adotivas, que seguem caminhos diferentes - Jasmine (Cate Blanchet) casa-se com um milionário e vive no luxo em Nova York, enquanto Ginger (Sally Hawkins) só se envolve com operários e tem uma vida apenas remediada em São Francisco. A história começa com a ida de Jasmine para a casa de Ginger, após perder tudo quando o marido é preso por ser um golpista. Mesmo falida ela vai de primeira classe, carregando bagagem Louis Vuitton, recusando-se a admitir sua nova condição. Ao longo dos flashbacks, utilizados para contar a história ao mesmo tempo em que constroem o contraponto entre as situações - entre a história delas e também entre o passado e o presente - vemos que a vida toda Jasmine "olhou para o outro lado". Desviava os olhos dos esquemas ilegais do marido, das suas incontáveis amantes, da superficialidade da sua relação. O que Allen retrata acontecendo com ela depois da queda, quando ela fala sozinha, conversa com fantasmas do passado e age como se ainda fosse rica, pode ser considerado um quadro dissociativo, antigamente chamado de crise histérica: a realidade é demais para ela, levando-a a uma negação tão intensa a ponto de tocar a loucura.

Num primeiro momento parece que Ginger é diferente, pois ela não foge para a fantasia como a irmã, vivendo imersa em sua realidade. Mas se ela não "olha para o outro lado" e encara a verdade, ao mesmo tempo transmite a sensação de não compreender exatamente o que está vendo. A chegada de Jasmine traz uma crise ao mexer com esse equilíbrio, revelando com sua ironia aquilo que ela sempre olhou sem enxergar.

O filme, que joga com opostos em tudo na vida das irmãs - rica/pobre; marido fino/marido grosso; costa leste/costa oeste - as coloca em lados contrários também nos seus mecanismos de defesa frente à dureza da existência. Uma não olha, a outra não enxerga. Representam extremos de algo que acontece com todos nós, em maior ou menor grau.

E é assim que Woody Allen se torna artista - e por isso universal: ao carregar nas tintas para pintar esse quadro, à moda de um caricaturista ele exagera nossos próprios traços para que nos compreendamos melhor.

Publicidade

Opinião por Daniel Martins de Barros

Professor colaborador do Dep. de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Autor do livro 'Rir é Preciso'

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.