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O saber dos pais, as invenções dos filhos e o conhecimento dos especialistas

Que rei sou eu?

A demanda de que as crianças fiquem quietas nas escolas, ainda que às custas da medicalização da infância, não seria uma resposta à posição em que os pais estão se colocando frente aos filhos?

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Por Nilson Sibemberg
Atualização:

A saga do menino bruxo Harry Potter encantou o mundo infanto-juvenil, bem como o dos adultos. Os livros da escritora inglesa J.K. Rowling tornaram-se "best sellers", deixando, com os filmes da série, inúmeros fãs por todo o planeta. Tal qual o sucesso de alguns contos de fada que atravessaram séculos, passando da transmissão oral entre adultos na Idade Média para a prensa de livros voltados ao público infantil pelas mãos dos irmãos Grimm, Charles Perrout, Andersen e outros, e chegando ao cinema nas versões de Walt Disney, isso tem uma razão. Essas obras nos falam de nós mesmos. Dizem de conflitos, medos e sonhos que fazem parte das fantasias de crianças e adultos em determinada cultura e tempo histórico. Do medo de ser abandonado pelos pais em "João e Maria", ou de se aventurar ao risco de ser comida pelo lobo mau - será que tem algum conteúdo erótico nesta fábula? - em "Chapeuzinho Vermelho", eles tratam de temas universais como, por exemplo, o conflito de gerações, o mistério da vida e da morte, o sentimento de ser diferente dos outros e sofrer com olhares preconceituosos -quem não lembra do "Patinho Feio"?-, e como aparecem em nossa vida cotidiana. Seu sucesso se deve ao fato de oferecerem através da narrativa coletiva elementos simbólicos que ajudam na elaboração de tais conflitos inconscientes.

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Em "Harry Potter e a Pedra Filosofal", primeiro livro e filme da série, encontramos um menino órfão na casa dos tios e do primo. As imagens do filme que apresentam Harry dormindo num armário embaixo da escada contrastam com a de seu primo, um garoto obeso, que recebe todos os mimos de seus pais e ainda fica a reclamar de que lhe falta um presente na pilha de muitos que recebera por seu aniversário. O menino bruxo amarga comentários maldosos desta família por ser diferente, filho de bruxos. O convite para participar da Escola de Magia e a presença do grandalhão e afetuoso Hagrid, que o defende dos tios e da tirania do primo, iniciam o antidoto ao desamparo que passou a viver com a perda dos pais. A relação fraterna que desenvolve com os amigos Ron e Hermione na escola fornecem o apoio para as aventuras que sucederão buscando dar conta dos perigos da vida. Dentro deste roteiro diversas questões vão aparecendo, como o enigma da perda dos pais e o fato de ser "o escolhido" para combater o vilão responsável pela morte deles e que ameaça a continuidade dos valores éticos transmitidos na escola que o acolheu.

São muitos os conflitos de que está composta a infância contidos neste sumário roteiro. O enigma da morte, do desejo dos pais, do medo de perdê-los e ficar só, desamparado e desprotegido num mundo cheio de perigos, o sentimento da rejeição por apresentar alguma diferença em relação à norma vigente, fazem parte de outros presentes na série. Entre eles encontramos duas posições da infância atual que, penso, merecem uma atenção especial. A criança que se torna o pequeno rei da casa -nenhuma relação com "O Pequeno Príncipe"-, aquela que não suporta que nada lhe falte, preenchendo todas lacunas com objetos e comida, até que se torne o tirano dos pais e, posteriormente, dos professores, contrastando com os pequenos sujeitos marcados pelo abandono, negligência dos cuidados parentais e maus tratos. O que leva a infância para esta bipolaridade? A demanda de que as crianças fiquem quietas nas escolas, ainda que às custas da medicalização da infância, não seria uma resposta à posição em que os pais estão se colocando frente aos filhos?

A negligência, o abandono e os maus tratos têm fortes razões sociais. No entanto, a miséria econômica, a dependência do álcool e de outras substâncias psicoativas por parte dos pais, o tempo excessivo dispendido para o trabalho, incluindo ai o deslocamento, a terceirização dos cuidados às crianças em casa ou na pré-escola, a pressa da vida cotidiana e a pressão da produtividade que leva ao achatamento do tempo no presente imediato, isso tudo não explica o fenômeno se não pensamos na repercussão que ele causa nos pais, responsáveis pelo cuidado dos filhos.

Uma criança desejada hoje por seus pais representa a possibilidade imaginária da realização pessoal do casal e de cada um dos genitores. Realização que leva em conta seus ideais de vida, seus valores éticos e morais, mas principalmente aquilo que queriam ter sido e não foram. Ou seja, que os filhos possam ser uma continuidade melhorada de seus pais. Agora, o que significa esse melhor? Bom, isso depende da experiência de vida de cada um e suas formas singulares de representação consciente e inconsciente dentro de um contexto social. Até um certo tempo, o filho pode encarnar esse ideal para seus pais. Porém, à medida que vai crescendo, vai construindo sua autonomia e lugar de desejo que o diferencia de seus cuidadores. Chega o conflito de gerações tão comum na adolescência.

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Será que o ritmo de vida atual, que reforça a terceirização da educação, aliado à imagem ideal de bons pais -que não podem falhar com seus filhos- apontada e bombardeada incessantemente por um conceito "psicologizante" veiculado em gabinetes médicos e psicológicos, nas escolas e na mídia, não colocaria os pais de hoje em dívida com seus filhos? Sim, os pais estão sempre muito aquém do ideal, até porque o ideal é da ordem do impossível. É fora da condição humana a sua realização. Todos estamos em falta. E os pais em falta com seus filhos. Se esta hipótese for verdadeira, estamos diante de uma inversão importante da dívida simbólica pela vida que seria dos filhos para com os pais. E isso tem consequências.

Sua majestade o bebê pode ficar na posição de rei mais tempo do que previsto. Os pais se tornam servos. O rei vira tirano. O tirano carrega do súdito as duas faces da moeda, o amor e o ódio. Ora se pagam todos os impostos extorsivos que o rei exige sem faltas, vide o quarto de nossas crianças repletos de objetos que em pouco tempo de uso já são esquecidos e a obesidade infantil como preocupação de saúde pública, ora o ódio substitui o amor servil e a agressividade mostra sua cara nos maus tratos e violência doméstica. Sendo que a face do ódio não depende da falta de dinheiro, ela é democrática. Está presente em todas classe sociais, ainda que a miséria seja um elemento facilitador maior.

Que respostas a sociedade tem dado às consequências advindas desta posição parental diante da infância? Durante muito tempo tem se dito exaustivamente que pais devem aprender a dizer não para os filhos, que devem dar limites. É verdade, isso é importante. A falta do limite simbólico frente à lei e seus representantes tem levado professores ao enfrentamento real com seus alunos. Notícia de professor agredido em sala de aula não tem faltado nos jornais. Parece que a resposta tem sido esta: se no simbólico não funcionou, então que a lei se imponha de outra maneira! Será que a onda de criar diagnósticos para cada sintoma que uma criança apresenta, ainda que este "sintoma" seja uma característica própria da infância, e silenciar a inquietude, a curiosidade, a inventividade de certas traquinagens com o uso abusivo de psicofármacos não tem sido a saída encontrada para o problema? Não se pode mais usar a vara de marmelo, a violência física contra crianças de fato é uma covardia, mas será que o uso indiscriminado de alguns medicamentos para disciplinar o corpo e o espírito não se tornou um substituto sutil, porque moderno, da mal falada varinha?

Se queremos refletir sobre o desenvolvimento infantil e a posição da infância na contemporaneidade precisamos levar em conta que o sintoma da criança é a resposta que ela tenta dar ao enigma do desejo dos adultos: que queres de mim?

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