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O saber dos pais, as invenções dos filhos e o conhecimento dos especialistas

Por que as crianças fazem artes? - A necessidade de uma certa desobediência na infância

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Por Julieta Jerusalinsky
Atualização:

Esses dias recebi pela internet uma tirinha na qual o Calvin está absolutamente "focado" na lição de casa, como se gosta de dizer hoje em dia. Os sucessivos convites de seu tigre Haroldo para aprontar as maiores estripulias fantasiosas, diante da dificuldade da lição, não surtem efeito. Calvin está tão concentrado em sua tarefa de casa que chega a sair fumacinha do seu lápis, tamanha a "produtividade" (mais um valor de nossos tempos). O último quadrinho não é mais colorido. Tudo fica cinza e o tigre Haroldo não passa de um bichinho de pelúcia inanimado.

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Ficamos invadidos de uma profunda tristeza. O que fizeram ao Calvin? Somos logo advertidos de que essa é uma livre criação em cima do personagem original, não assinada pelo autor. Mas a pergunta insiste. O que está se fazendo com a infância? Onde estão os Calvins que outrora eram crianças consideradas vivazes e cheias de energia e hoje em dia são tantas vezes considerados transgressores e opositores?

Se Calvin ficar assim, o que ele contará para seus filhos acerca de suas experiências de infância: que ele fazia bem a lição? Que era o aluno e filho adequado que todos esperavam?

Vivemos pedindo às crianças que parem quietas, que não sacolejem seus corpos turbulentos, que ponham as coisas no lugar, que parem de fazer ruídos insistentes, de repetir restinhos de músicas pegajosas, de parar de juntar tralhas e de deixar seus brinquedos espalhados.

Mas que lembranças nós mesmos temos de nossas infâncias?

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Etimologicamente o termo obedecer vem de ouvir, mas, por mais que os pais falem e falem, parece que, por vezes, as crianças não ouvem e insistem em seus atos, fazendo ouvidos moucos às advertências.

As crianças aprontam, não são obedientes. Por mais que incomode, ao ler Calvin rimos, pois no fundo sabemos que uma certa desobediência é fundamental na infância. Uma certa desobediência é até mesmo formadora de experiências que constituem um saber, que permitem aprender com a vida e aprender a viver.

Como se aprende é uma questão amplamente discutida. Entre os autores há aqueles que sublinham o fato de que é por meio da experimentação que a criança chega a formular conceitos simbólicos. Por isso, não basta dizer para a criança ou fazê-la repetir, é preciso que ela experimente para chegar a essa construção. Piaget é um autor central dessa vertente, e, por isso, as metodologias de ensino que partem de seus princípios (como o construtivismo) apontam a necessidade de que a criança seja ativa nesse processo.

Há autores que destacam o fato de que a criança nasce em uma estrutura simbólica já estabelecida, dentro da qual é decisiva a transmissão que lhe é feita para que chegue a produzir um saber. Para tanto, é central que a criança seja considerada como membro de uma família, de uma cultura, de uma sociedade, e apostar em sua possibilidade de compartilhar com os demais alguns dos traços fundamentais de pertença a esses grupos. Desse modo a criança não precisa, por assim dizer, reinventar a roda. Ela não precisa experimentar "de tudo", pois também se aprende a representar o real do mundo por oposição e analogia simbólicas. A psicanálise nos adverte dessa importante questão.

Dessa interlocução interdisciplinar resulta que o saber não se produz de modo isolado, mas na relação com os outros. Portanto, para saber, não basta uma simples postura de obediência ou de autonomia, pois a criança realiza escolhas dentro do que lhe é transmitido e diante do qual toma posição. Para tanto, precisa também fazer algumas experiências próprias que lhe permitam por à prova o alcance do que lhe é transmitido.

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Ou seja, para produzir um saber, é preciso que os outros falem com a criança e apostem nela. Assim a criança passa a confiar nos outros e a contar com eles, aprendendo com as experiências dos demais e, portanto, poupando-se de uma série de percalços na vida. Mas também é preciso que a criança, em algum ponto, faça as suas próprias investigações, na medida em que percebe que os adultos sabem, mas que ninguém sabe tudo.

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Certa vez, quando criança, minha família alugou uma casa na praia na qual havia um pé de pimenta dedo de moça. Meus pais chamaram a criançada no quintal e advertiram: "Cuidado. Não lhes ocorra morder essa fruta. Ela é bonitinha, mas é tão ardida que queima".

Como assim, algo que não é fogo e queima? - logo perguntei. A resposta foi tautológica: arde porque queima e queima porque arde. Explicaram que assim era e ponto. Tarde demais, eu já estava mordida pela curiosidade. Esse conceito dos adultos para mim não fazia o menor sentido. Era preciso provar a veracidade daquele enunciado, por à prova uma propriedade que até então era para mim intrínseca e exclusiva do fogo.

Lá fui eu...

Não houve gelo, bochecho com água, copo de leite ou pasta de dente mentolada que me fizesse parar de lacrimejar, apesar das minhas insistentes tentativas, não só para acalmar o mal-estar, mas principalmente para disfarçar a minha estripulia, a fim de me poupar de ouvir o sermão que certamente iria arder ainda mais no orgulho.

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Minha mãe me perguntou se estava tudo bem: "Tuuuudo", disse eu, de costas, tentando disfarçar o gelo na boca. Ela, com um olho aberto e outro fechado para o meu ato, teve a sabedoria de não proferir o insuportável enunciado adulto: EU TE AVISEI!!!!

Uma certa desobediência na infância é central para por à prova o saber. Se uma criança só apronta é porque não tem uma relação de confiança com os outros e precisa a cada momento enfrentar o saber dos adultos para provar que eles não sabem de nada. Isso é um problema. Mas uma criança que só obedece corre o risco de não poder ir um palmo além do que lhe é ensinado, ficando inibida em sua inventividade. Fazer artes é também permitir-se alguma ousadia, é ter a coragem de ir além com uma certa solidão investigando por conta própria aquilo que não parece fazer sentido algum.

Tempos depois de receber o quadrinho do Calvin com título que alude à medicalização da infância, recebi outra livre criação de um inconformado, no qual o tigre diz a Calvin: vamos amigo, ainda dá tempo! O quadrinho final volta a ficar colorido. Calvin larga o lápis e ele e Haroldo se abraçam em direção ao quintal.

Depois dessa experiência posso dizer: pimenta queima, e muito!!! Mas às vezes é preciso pecar, morder a fruta e correr o risco para tirar suas próprias conclusões.

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