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Os Hermanos

Os peculiares "suicidados" argentinos -- Parte 1: o capitão com um 'touch' contorcionista

Thomas De Quincey (1785-1859), autor de 'O assassinato como uma das belas artes' teria ficado horrorizado com o amadorismo dos peculiares "suicidados" dos escândalos de corrupção da Argentina

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Por arielpalacios
Atualização:

O capitão Estrada era destro, mas o revólver que disparou o tiro estava perto de sua mão esquerda. Ele 'suicidou-se' com um tiro na nuca. E com a arma posicionada de baixo para cima... E estava segurando o revólver com as duas mãos, já que ambas estavam borrifadas de sangue. Um verdadeiro contorcionista? Ou, quem o 'suicidou' era um mero amateur da 'arte' referida por De Quincey?

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Suicídio? O revólver estava na mão esquerda, mas o capitão-de-navio da reserva Horacio Pedro Estrada, 65 anos, era destro, e não canhoto. Poderia ser a cena de um thriller, mas foi apenas mais um capítulo na complexa trama do escândalo de vendas ilegal de armas da Argentina ao Equador e a Croácia, um affaire ainda sem solução.

Estrada, que fora o encarregado da supervisão do envio das armas à cidade equatoriana de Guayaquil, havia negado comparecer à Justiça. No entanto, o militar havia enviado uma declaração escrita onde admitia sua participação na operação, embora negasse ser o responsável.

Além disso, como em uma superprodução cinematográfica onde não podiam faltar os efeitos especiais, o escândalo contou com a colossal explosão da fábrica militar de Rio Tercero, em 1995.

A chuva de estilhaços e as granadas espalhadas por toda a cidade provocaram a evacuação de 60 mil pessoas do local e arrasou os bairros vizinhos à fábrica. Onze pessoas morreram e 300 foram feridas.

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A parte principal trama começou em 1991 e continuou até 1995, quando Menem e vários ministros assinaram três decretos presidenciais que autorizavam vendas de armas ao Panamá e à Venezuela.

Mas, as armas para a Venezuela nunca chegaram lá: foram parar na Croácia, país que no meio da Guerra da Ex-Iugoslávia estava sob embargo de armas da ONU. Para complicar, a Argentina participava da missão de paz da ONU na área.

Foram enviadas ao território croata 6.500 toneladas de armas e munições, que incluíram pelo menos 18 canhões Citer de 155 milímetros.

E as armas oficialmente vendidas ao Panamá, tampouco chegaram a esse país no istmo americano. Na verdade, o o carregamento foi desembarcado no Equador: um total de 5 mil fuzis FAL e 75 toneladas de munições.

Na ocasião o Equador estava em guerra com o Peru pela Cordilheira do Cóndor. Paralelamente, a Argentina era desde 1940 avalista do tratado de Paz entre os dois países.

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Quando o caso das armas veio à tona, Menem foi criticado pela estranha decisão de ter assinado um decreto de venda de armas ao Panamá, já que desde a invasão norte-americana de 1989, o país não possui forças armadas.

De quebra, o Peru havia sido um histórico aliado da Argentina desde os tempos da independência. E além disso, o Peru havia oferecido ajuda (aviões) à Argentina durante a Guerra das Malvinas (1982).

Em 1994, Luis Sarlenga, o interventor da empresa estatal de material bélico da Argentina, a "Fabricaciones Militares", determinou que o envio clandestino seria feito com armas em uso pelo exército. Esta foi a falha que tornou público o envio ilegal: os equatorianos receberam material defeituoso, e reclamaram, ameaçando processar o Estado argentino.

Com a denúncia pública sobre o envio ilegal das armas, começou uma crise política que foi paliada momentaneamente pela renúncia de vários ministros. Na sequência, a Justiça pediu à Interpol a captura internacional do tenente-coronel Diego Palleros, que agiu como intermediário dos envios de armas, utilizando empresas uruguaias como fachadas.

Em 1998 Palleros foi preso na África do Sul, onde disse que Menem sabia do destino real dos envios de armas e ameaçou contar "tudo o que sabia". Um mês depois, o capitão Estrada, sócio de Palleros, foi convocado pela Justiça em Buenos Aires.

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Quatro dias mais tarde, Palleros foi solto pela Justiça sul-africana, que simultaneamente recusou o pedido de extradição feito pela Argentina. No mesmo dia, o 25 de agosto, Estrada apareceu morto. A estranha morte de Estrada foi interpretada como um "sinal" a Palleros, para que este não continuasse falando.

Desde o início das investigações sobre as vendas ilegais de armas uma série de mortes aumentaram as suspeitas: as primeiras foram as onze mortes ocorridas na explosão da fábrica militar de armas de Rio Tercero, em Córdoba. Suspeita-se que a explosão foi uma forma de ocultar a falta de diversas armas.

Um ano depois, em 1996, o helicóptero onde viajava o general Juan Andreoli, sucessor de Sarlenga no posto de diretor da Fabricaciones Militares, espatifou-se ao tentar um pouso de emergência no Campo de Pólo no bairro de Palermo. O aparelho tentou um um pouso forçado na pista de pólo da região, mas espatifou-se e todos as dez pessoas que nele viajavam faleceram na hora. No helicóptero também estava o coronel Rodolfo Aguilar, que havia sido convocado como testemunha no processo sobre a venda ilegal de armas. Além deles, no acidente morreu uma cunhada do general Martín Balza, chefe do Estado-Maior do Exército.

Em 1997, duas testemunhas de irregularidades na venda de armas - Carlos Alberto Alonso (encarregado dos controles da Alfândega) e Vicente Bruzza (operário da fábrica militar de Río Tercero que havia denunciado uma 'maquiagem' no registro das armas) morreram na mesma semana de estranhos ataques cardíacos.

Na mesma época, faleceu de um derrame cerebral Francisco Callejas, técnico das Fabricações Militares, que havia ido à Croácia para calibrar os canhões (que deveriam ter sido enviados para a Venezuela.

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Outro "suicídio", com um tiro a um metro de distância (!), do banqueiro Mario Perel, envolvido nesse escândalo (e em outros) também marcou os anos 90. Perel teria "falado demais" com deputados da oposição que estavam investigando lavagem de dinheiro e o escândalo das armas.

E finalmente, a morte do capitão Estrada.

Estrada apareceu morto sentado, com o torso sobre sua escrivaninha, em cima da qual havia um revólver 9 milímetros.

Mas essa não era a arma que havia provocado sua morte: o tiro havia sido disparado do revólver calibre 38 que estava caído no chão.

Outro ponto que aumentou as suspeitas foi a trajetória que a bala fez na cabeça de Estrada: o tiro foi dado ao lado da orelha esquerda, perto da nuca, de trás para a frente, e de baixo para cima.

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O tiro, feito do lado esquerdo, pareceu mais estranho quando se soube que Estrada não era canhoto. Os conhecidos e amigos de Estrada destacaram que o defunto militar não era "acrobata" ou "contorcionista" para implementar um suicídio com tal esforço de flexibilidade muscular.

Além disso, as duas mãos de Estrada estavam borrifadas de sangue, o que demonstraria que o militar havia disparado a arma com as duas mãos. Uma posição muito incômoda para quem vai se suicidar.

As suspeitas de que Estrada não se matou aumentaram mais pela falta de rastros de pólvora nas mãos, uma evidência que quase nunca falta em quem dispara uma arma.

CURRICULUM TUMULTUADO O curriculum vitae de Estrada acumulava a participação, quando jovem, do bombardeio da Praça de Mayo, em 1955, durante uma tentativa de golpe de Estado. No bombardeio morreram de 200 a 300 civis.

Além disso, teve sórdidas ocupações além de "traficante de armas": era acusado por 25 casos de violações aos direitos humanos. Estrada havia sido chefe de um "grupo de tarefas" da ESMA, o principal centro detenção e torturas durante a última Ditadura Militar.

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Como se fosse pouco, Estrada participou da falsificação de passaportes para o líder da logia maçônica P-2, do italiano Licio Gelli.

O trabalho de Estrada era feito por dois seqüestrados - um especialista em fotocromia e um gráfico - que imprimiram 10 mil passaportes nas gráficas da ESMA.

Após o fim da Ditadura Estrada fugiu e foi julgado à revelia pelos crimes que cometeu durante o regime militar. No entanto, foi anistiado pela "Lei de Obediência Devida" do presidente Raúl Alfonsín.

JULGAMENTO DE MENEM Em 2001 o juiz federal Jorge Urso processou o ex-presidente Carlos Menem e o colocou em prisão domiciliar, por considerá-lo chefe de uma "máfia" que havia protagonizado o maior caso de contrabando de canhões, fuzis, foguetes anti-tanques e munições registrado na História argentina.

Cinco meses e meio depois a Corte Suprema (dentro da qual Menem contava com juízes que haviam declarado publicamente sua amizade com o ex-presidente), no meio de grande polêmica, colocou "El Turco" - como Menem era chamado popularmente - em liberdade. Mas, em 2007 ele foi novamente processado. No final do ano passado começou o julgamento oral e público do ex-presidente e de outros 17 envolvidos. O ex-presidente tentou apelar e anular o julgamento. Mas, na semana passada Corte Suprema desconsiderou o pedido de Menem.

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FATOS, NÚMEROS E DRIBLES Os envios de armas - um total de 6.500 toneladas remetidas em dez remessas confirmadas (suspeita-se que podem ter ocorrido remessas ainda não descobertas) - foram realizados entre 1991 e 1995.

A estimativa é que o Estado argentino teve um prejuízo de mais de US$ 180 milhões com o contrabando das armas. As armas foram vendidas de forma clandestina para a Croácia e o Equador.

O status de parlamentar propicia a Menem a imunidade necessária para evitar que, se for condenado, seja enviado à prisão cumprir uma pena que poderia ir de 12 a 32 anos de cadeia. Menem só poderia ser preso se o Senado suspender sua imunidade. Ou, a partir de 2014, quando acaba seu mandato de senador.

Um total de 424 testemunhas foram convocadas para prestar depoimento sobre o caso, incluindo o ex-presidente Fernando De la Rúa.

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