Foto do(a) blog

Os Hermanos

Breve guia da Buenos Aires borgiana

PUBLICIDADE

Por arielpalacios
Atualização:

Jorge Luis Borges amava sua cidade natal, Buenos Aires, da qual uma vez disse que a considerava "tão eterna quanto a água e o ar". A ela dedicou dezenas de poemas. Em diversos contos a cidade é o cenário de suas tramas fantásticas. Segundo o jornalista Carlos Zito - especialista no autor de "O Aleph" - "Borges recriou Buenos Aires de acordo com uma imaginação profícua capaz de envolver o bairro de Palermo em um paradoxo metafísico, uma esquina de San Telmo em um pesadelo...e a Praça Once em um incomparável inferno!".

PUBLICIDADE

Aqui segue um brevíssimo panorama da geografia 'pessoal' borgiana (em breve faremos outro guia, sobre a Buenos Aires dos contos de Borges).

AS CASAS DA INFÂNCIA - Borges nasceu em 1899 em uma casa da rua Tucumán, 840. A casa não existe mais, embora sua substituta ostente uma placa de bronze comemorativa. Dois anos depois, sua família mudou-se ao bairro de Palermo, na rua Serrano, 2147, onde moraria até os 13 anos, quando partiria para a Europa. Ali passou os anos mais felizes de sua vida, especialmente na biblioteca de seu pai. "De fato, às vezes penso que nunca saí dela. Ainda posso vê-la", escreveu Borges anos depois.

O bairro onde estava, Palermo, seria o palco de inúmeros contos e ensaios. Na sua juventude era um subúrbio relativamente rude, onde ainda sobreviviam alguns tipos que serviriam para seus relatos: bandidos, jogadores de cartas, músicos e assassinos. O bairro estava povoado por homens cujo sentido da honra estava tão vinculado à coragem física que pareciam saídos de uma saga medieval. Nas ruas de Palermo Borges teve seus primeiros contatos com o tango e a milonga. E com o vasto material que serviria para sua mitologia de Buenos Aires.

APARTAMENTO DA CALLE MAIPÚ - No mesmo ano em que publica "Ficções", em 1944, os Borges mudam-se à rua Maipú, 994, apartamento 6B. Ali, o escritor morará durante 41 anos. O apartamento era mínimo: um exíguo hall, uma sala de visitas que se prolongava na sala de jantar, o quarto da mãe de Borges (que faleceu nos anos 70), e o quarto de Epifanía Uveda (conhecida como "Fani"), a eterna e fidelíssima governanta da família. Borges dormia na sala, protegendo sua intimidade com um biombo. Com a morte de sua mãe, o escritor, já septuagenário, conseguiu ter um quarto próprio.

Publicidade

O escritor peruano Mario Vargas Llosa, que o visitou em 1981, descreveu seu quarto "é como uma cela: estreito, com uma cama tão frágil que parece de criança, e uma pequena estante cheia de livros anglo-saxões".

O quarto também possuía uma velha cadeira cinza com o estofado pintado com uma "Dame à la Licorne" de autoria de sua irmã Norah, duas aquarelas de Xul Solar. Também havia uma emblemática gravura de Piranesi, ilustrando um labirinto. Nesse apartamento Borges ditou à sua mãe suas principais obras: "O Aleph", "Outras Inquisições", "O Informe de Brodie", "Os Conjurados", entre outros.

PUENTE ALSINA - Borges e seu inseparável amigo e escritor Adolfo Bioy Casares apreciavam a desolação da ponte Alsina, na zona sul de Buenos Aires (que liga a capital com o município de Lanús). Eles se deleitavam com a fama de bairro de malandros e pessoas armadas de facões. Um ano antes de morrer, Bioy Casares me disse que "as vezes levávamos algum intelectual recém-chegado da Europa a Ponte Alsina. Sempre perguntavam 'E agora?'. Respondíamos: 'E agora nada'. E explicávamos: 'É isto aqui'. Gostávamos dali, não sei porquê...Durante um ano, fomos todas as noites até ali".

BIBLIOTECA NACIONAL - Quando o Peronismo chegou ao poder Borges foi afastado de seu cargo em uma biblioteca e colocado como "inspetor de galinhas nas feiras públicas". Com a queda do presidente general Juan Domingo Perón em 1955, Borges foi redimido e nomeado diretor da Biblioteca Nacional, situada até o começo desta década na rua México 564. O novo trabalho recuperou para Borges um velho e esquecido prazer: frequentar a zona sul da cidade. No começo, Borges ainda podia enxergar e ler os títulos dos livros. Mas, três anos depois, já não via nada. E assim, escreveu o "Poema dos dons": "Ninguém rebaixe à lágrima ou acusação/ esta declaração do poder/ de Deus, que com magnífica ironia/ me deu ao mesmo tempos os livros e a noite". Em "O Livro de Areia", Borges, personagem ele mesmo de um conto seu, esconde o perverso livro de páginas infinitas que perturbava sua mente. À sua amiga Maria Esther Vázquez uma vez confessou: "em qualquer lugar do mundo onde esteja, sonho com a Biblioteca Nacional...ela é infinita e me pertence".

CEMITÉRIO DA RECOLETA - Neste aristocrático cemitério, no mausoléu da família, Borges esperava passar a eternidade. No entanto, hoje repousa em Genebra. "Aqui está a recatada morte portenha", disse o escritor sobre La Recoleta. Borges gostava de passear pelo cemitério, onde estão enterrados os principais nomes da História do país. Em "Fervor de Buenos Aires", escreveu: "Belos são os sepulcros, /o nu latim e as travadas datas fatais, / a conjunção do mármore e da flor / e as pracinhas com frescor de pátio/ e os muitos ontens da História / hoje detida e única".

Publicidade

E de brinde, um poema de Borges, o já citado 'Fundación mítica de Buenos Aires':

¿Y fue por este río de sueñera y de barro que las proas vinieron a fundarme la patria? Irían a los tumbos los barquitos pintados entre los camalotes de la corriente zaina.

Pensando bien la cosa, supondremos que el río era azulejo entonces como oriundo del cielo con su estrellita roja para marcar el sitio en que ayunó Juan Díaz y los indios comieron.

Lo cierto es que mil hombres y otros mil arribaron por un mar que tenía cinco lunas de anchura y aún estaba poblado de sirenas y endriagos y de piedras imanes que enloquecen la brújula.

Prendieron unos ranchos trémulos en la costa, durmieron extrañados. Dicen que en el Riachuelo, pero son embelecos fraguados en la Boca. Fue una manzana entera y en mi barrio: en Palermo.

Publicidade

Una manzana entera pero en mitá del campo expuesta a las auroras y lluvias y suestadas. La manzana pareja que persiste en mi barrio: Guatemala, Serrano, Paraguay y Gurruchaga.

Un almacén rosado como revés de naipe brilló y en la trastienda conversaron un truco; el almacén rosado floreció en un compadre, ya patrón de la esquina, ya resentido y duro.

El primer organito salvaba el horizonte con su achacoso porte, su habanera y su gringo. El corralón seguro ya opinaba YRIGOYEN, algún piano mandaba tangos de Saborido.

Una cigarrería sahumó como una rosa el desierto. La tarde se había ahondado en ayeres, los hombres compartieron un pasado ilusorio. Sólo faltó una cosa: la vereda de enfrente.

A mí se me hace cuento que empezó Buenos Aires: La juzgo tan eterna como el agua y como el aire.

Publicidade

Ahá! E de brinde especial, para aqueles que chegaram até esta parte, o próprio Borges recitando o poema, após uma breve introdução.Aqui, neste link do Youtube: http://www.youtube.com/watch?v=gjtwcD8J5xU

Bom, e para completar esta saborosa overdose borgiana, mais uma do autor de "El Aleph"... uma gravação, em branco e preto, de sua conferência em Buenos Aires sobre a cegueira.O link do Youtube: http://www.youtube.com/watch?v=6f1qryPPVFI&feature=related

.............................................

Comentários racistas, chauvinistas, sexistas ou que coloquem a sociedade de um país como superior a de outro país, não serão publicados. Tampouco serão publicados ataques pessoais entre leitores nem ocuparemos espaço com observações ortográficas relativas aos comentários dos participantes. Além disso, não publicaremos palavras ou expressões de baixo calão (a não ser por questões etimológicas, como back ground antropológico). Todos os comentários devem ter relação com o tema da postagem. E, acima de tudo, serão cortadas frases de comentaristas que façam apologia do delito.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.