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Diálogo intercontinental sobre futebol, com toques de política, economia e cultura.

Um outro futebol, mas futebol de todos modos

Carles: Alguns economistas preveem uma vida máxima de 5 anos para a Liga Espanhola, antes de que vire um torneio como por exemplo o Paulistão, se já não virou. Existem interesses comerciais para que frutifique a ideia de uma Superliga Europeia, algo a que não parecem se opor os dois grandes daqui, muito pouco empenhados em fazer o derradeiro boca a boca na liga nacional. Os grandes clubes do continente se parecem, cada vez mais, a empresas, alguns ligados a grandes corporações, o que contrasta com as gestões amadoras e os baixos orçamentos dos clubes com vínculos locais. O grande objetivo é o torcedor pay-per-view e, a esse passo, as arquibancadas vão se transformar, logo, logo, em grandes centros comerciais, sempre que se inclua, claro, o som de cânticos das torcidas gravados, ao estilo Sitcom. É a última estocada da espada da globalização sobre a cultura popular e, talvez conviesse que urgentemente reforçássemos nosso apoio ao clube do bairro ou da cidade. Antes que seja muito tarde.

Por Carles Martí (Espanha) e José Eduardo Carvalho (Brasil)
Atualização:

Edu: Vamos lá tentar decifrar esse apocalipse. Temos daqui a impressão de que a Liga Espanhola é mesmo um caso sério de falta de horizontes, embora eu considere que falta um tanto ainda, bem mais que cinco anos, para chegarem perto do Paulistão. Mas ainda que o desfecho esteja próximo, fica difícil prever isso em termos continentais, porque em certos países as fórmulas encontradas ainda preservam bastante os vínculos e, se vermos pelo lado econômico, ingleses e alemães mantêm uma solidez razoável e poderiam servir até de modelo a países como a Espanha e mesmo a Itália. Acho até que, antes da Liga Europeia, haverá um período de purgatório, que, aliás, é mais ou menos o que está vivendo neste instante o Calcio, onde a venda para um grupo indonésio do último campeão europeu, a Inter, meio que decreta o fim de uma era. Mas concordamos em um ponto, o principal: é preciso se mexer.

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Carles: Olha, a coisa se encaminha para o total desprezo aos pequenos e nesse pacote não entram só o Osasuna, o Depor ou o Rayo, mas também todos os clubes pouco profissionalizados do planeta. Saiba que a única entidade no Brasil que interessa aos barões que controlam o esporte é a seleção, com o suficiente peso comercial para comover os torcedores do futuro, muito compradores e pouco conhecedores da matéria. A compra dos clubes por grandes grupos financeiros, a maioria periféricos, é só um passo porque um cenário futebolístico apenas com ligas estratosféricas e grandes torneios entre seleções necessita uma boa retaguarda financeira. Nem acho que o problema sejam esses grupos com pouca tradição dentro do futebol, eles são só o meio ou os grandes sustentadores. O perigo é justamente a perda de vínculos, mesmo. Ou você acha uma loucura minha que o Corinthians possa virar uma franquia e se mude para Miami?

Edu: A mais completa insanidade... E não só por ser o Corinthians. A Ponte Preta,  o Figueirense, o Sport Recife e tantos outros considerados médios são clubes de comunidades, não têm a menor afinidade com a cultura das franquias. É mais fácil um clube desses fechar as portas (o que provavelmente acontecerá com vários) do que virar um artefato de mercado nesses moldes. Pode ser até que alguns grandes europeus se adaptem a essa realidade, mas serão grandes por pouco tempo, posso te garantir. O futebol - e esse é o lado bom da história - tem visceral rejeição a esses modelos pasteurizados, tanto que alguns magnatas e reis do business norte-americanos têm comido o pão que o diabo amassou em certos clubes ingleses. A coisa está feia, mas do jeito que você está pintando parece o fim do mundo logo após o amanhecer. Não é bem assim. O futebol, se bem que maltratado e desprezado, tem muita resistência, principalmente pelo fato de ter sustentação na inesgotável demanda de entusiasmo popular.

Carles: Acho que o problema é essa desdramatização mesmo, porque, na verdade, sem ser o fim do mundo, tudo isso pode ser uma grande perda, como já aconteceu com tantas outras formas de expressão cultural - a música, o cinema ou a literatura - submetidas a processos similares. Apesar disso, a vida seguiu e os cidadãos só perdemos uma considerável porção de afinidade com aquilo que consumimos. Ao reduzir nossos vínculos com muitas das coisas que ajudamos a criar, perdemos cada vez mais poder de decisão sobre o que queremos fazer nas nossas horas de lazer. Só isso. Eu não acho pouco. Mas tampouco estou pintando um quadro apocalíptico, por mais que você insista nisso. Claro que muitos desses clubes que você citou vão desaparecer antes de virarem franquias, depende de quanto eles sejam considerados descartáveis. A maioria provavelmente. Sobrevirão aqueles que fortalecerem sua marca (palavra de moda) o suficiente para transformá-la num produto vendável. Também não é uma previsão de futuro, mas uma tendência muito provável, que ainda tem volta, insisto, valorizando a pequena ou grande entidade esportiva que temos mais próxima.

Edu: Não sei se você está querendo dizer que existe um conformismo generalizado, mas, se é isso, também não concordo. É verdade que muita gente, como sempre na história da humanidade, segue o ritmo de acordo com a dança, mas os cidadãos que prezam os vínculos continuam lutando por eles, fazendo a própria dança. Nossos filhos provavelmente não concordam que os valores culturais estejam num processo de 'grande perda' e eles mesmos tratam de manter as chamas acesas, bem como quem produz cultura hoje em dia. Se formos analisar tudo por nossas referências pessoais, estamos fritos e condenados ao saudosismo. E se fecharmos o foco sobre o futebol, claro que há perigos iminentes, contágio com os sistemas mais cruéis, mas existe uma dinâmica de adaptação que não é necessariamente conformismo, a não ser na visão dos mais sectários. O fato é que o futebol, hoje, precisa de mais dinheiro do que precisava há 30 anos. E mudou como prática esportiva, como acontece com quase todas as manifestações.

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Carles: Não gostaria que um reclamo pela valorização dos vínculos de sempre fosse confundido com saudosismo. A cultura é dinâmica e obedece aos mesmos processos de mudança do resto da sociedade. Também não acho má ideia que japoneses vistam camisetas e "bufandas" do Valencia ou que um garoto de São Paulo tenha uma camiseta do Manchester. Desde que conheçam e reconheçam as formas como suas comunidades se relacionam com o esporte. Ou também podemos assumir desde já que preferimos ver os grandes espetáculos produzidos e pouco espontâneos pela televisão e voltar a desfrutar de uma várzea reinventada. Também é uma solução.

Edu: Bom, a várzea está aí, ao contrário do que a burguesia pensa e quer, mas quem quiser é só procurar porque vai encontrar. E ela não se contrapõe necessariamente ao espetáculo produzido, que a maioria gosta de ver. Eu gosto e desfruto e, pelo que me consta, você também. Quanto às formas como as comunidades se relacionam com o esporte... bom. Seria recomeçar uma discussão sem fim e com cara de Finados.

Carles: Ou de ressurreição, dependendo do ponto de vista.

 

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