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Diálogo intercontinental sobre futebol, com toques de política, economia e cultura.

Quando o errado também dá certo

Carles: Surpresa total, o Flamengo que parecia caindo pelas tabelas, perdido e sem projeto, campeão. Você seria capaz de explicar um pouco essa história aos que acompanhamos de longe?

Por Carles Martí (Espanha) e José Eduardo Carvalho (Brasil)
Atualização:

Edu: Foi com todos os méritos campeão da Copa do Brasil mas, por mais que sua gigantesca torcida e sua parcela atuante na imprensa discordem, o título pode ser considerado a surpresa do ano no futebol brasileiro. A conquista é resultado de um padrão de procedimento que não chega a deixar orgulhosos os admiradores do futebol brasileiro, aquele que alia uma péssima gestão a um conjunto de fatores que conseguem reverter tecnicamente uma situação que parecia caótica. O Flamengo só foi campeão por sua grandeza institucional e por reunir um punhado de jogadores muito especiais em um momento particularmente delicado. Nenhuma revolução tática, nenhum planejamento especial, nada de projetos mirabolantes.

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Carles: Material humano de qualidade é sempre um bom começo. Com ele, boas ideias e trabalho honesto pode-se fazer quase tudo. Sem ele, não se vai a nenhuma parte. No meio de tudo isso, o que mais chamou minha atenção foi a passagem de Mano Menezes, alegando que não tinham sido entendido pelos jogadores. Claro que o nível intelectual dos boleiros precisa melhorar, mas um treinador que se propõe a dirigir um grupo humano não deveria usar esse tipo de argumento. Se não foi entendido, ele tem grande parte da responsabilidade, imagino. O que realmente não possível é não se entender com os dirigentes.

Edu: A saída de Menezes é um dos capítulos, porque só há duas rodadas o time conseguiu se livrar efetivamente do rebaixamento no Campeonato Brasileiro, depois de atravessar péssimos momentos ao longo do ano e de ter trocado quatro vezes de treinador, incluindo a traumática saída de Mano. Prova de que algumas coisas sem explicação continuam acontecendo no futebol brasileiro, uma misteriosa entropia que age nos momentos de caos e reordena o incerto e o duvidoso, movimenta as emoções e, por fim, traz resultados. Não há outra explicação para este Flamengo.

Carles: Que eu saiba, ao fim das contas, é a história desse país, não? Costumo dizer que nada melhor do que uma combinação das melhores coisas de cada casa para poder formar um coquetel explosivo, no melhor sentido. Eu quero essa capacidade de improvisação e de adaptação para o meu time. Só não serve a bagunça institucionalizada, e mais como forma de mascarar desigualdades e favorecimentos. A história do Flamengo é tão gloriosa como turva. E se me permite provocar um pouco, a Copa é uma fórmula de mata-mata, playoff de cabo a rabo. Muito interessante para se ter no calendário e oferecer esse toque de imediatismos que não é possível no campeonato por pontos corridos. Mas também pode ser algo enganoso, que ofusca possibilidades de avaliações mais objetivas. Não quero tirar o mérito do título, mas já vi muito time ganhar a Copa e ser rebaixado quase simultaneamente. Não cheguei a acompanhar de perto a passagem de Menezes pelo Flamengo, mas não existe a possibilidade de que o clube tenha tido pouca paciência com um projeto a mais longo prazo?

Edu: É uma competição enganosa mesmo, tem toda a razão, tanto que a expressão 'times copeiros' se difundiu como um grande elogio, mas um elogio limitador, o Flamengo é prova disso como outros grandes já foram em anteriores temporadas. Eu diria até que o Mengo, com a estatura que tem, foi campeão apesar da bagunça institucionalizada. A certa altura do ano, ainda com Mano Menezes, o time pareceu perdido. Mano levou para o clube veteranos como Chicão e André Santos, seus velhos parceiros dos tempos de Corinthians, que se uniram a outro daquele grupo, o meia Elias.

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Carles: Os treinadores costumam se cercar de seus afetos como forma de se proteger em terreno hostil. Mourinho é especialista no tema, acostumado a criar esse tipo de ambiente em que ele se move com maior comodidade sempre. Só que tais recursos, em vez de pacificar, costumam criar bandos com a consequente animosidade. Não que alguns valores mais experientes não possam ser o tempero ideal para um time jovem e promissor.

Edu: Bom, não funcionou no início, mas a simplicidade do novo técnico, Jaime de Almeida, um prata da casa, trouxe funcionalidade ao time para uma disputa particular como a Copa Brasil, em que cada mata-mata é uma história. No fim, os experientes deram sua parcela de ajuda. Mas nesse meio tempo, cresceram demais os três jogadores que foram - sob a batuta providencial do eficiente Elias, outro xodó do Mano - as grandes armas da conquista. É algo que costuma acontecer nesses torneios no Brasil, jogadores que são abraçados pelas grandes torcidas e se tornam imprescindíveis em certos momentos de tensão.

Carles: É outro componente importante, o conhecimento da cultura do clube. Não que seja imperioso ser prata da casa para funcionar como gestor, mas pelo menos ter a sensibilidade suficiente para reconhecer os traços que pautam comportamentos e expectativas. Sem dúvida, isso facilita as coisas. Historicamente, o Flamengo sempre revelou, imagino que o clube continua recebendo centenas de garotos interessados. Têm santos da casa nesse milagre?

Edu: Um deles é nascido no Flamengo, o volante ofensivo Luiz Antônio, que já andou pela Seleção Sub-20 e que agora, aos 22 anos, dita o ritmo do time, sendo que até há alguns meses era uma reserva sem grande perspectiva. Foi, nas quartas de final contra o Botafogo, nas semifinais contra o Goiás e nas finais contra o Atlético Paranaense, o termômetro da equipe. Como ele, Paulinho - disparado, o melhor jogador da decisão contra o Atlético PR - parecia um jogador condenado a equipes menores até bem pouco tempo atrás. Paulista de Guarulhos, onde começou a jogar (pelo Flamengo dessa cidade), chegou ao profissionalismo no XV de Piracicaba, onde foi visto com desconfiança no início mas se transformou em herói do título da Séria A2 Paulista, até ser emprestado sem maiores referências ao Flamengo no início deste ano. Sua explosão técnica e física foi impressionante, joga pelo lado esquerdo e sabe ser incisivo no ataque e especialmente colaborativo na marcação.

Carles: Segunda a imprensa, o grande destaque da decisão seria Hernane, autor de um gol decisivo ...

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Edu: Deixei para o fim, mas não por menor importância. Hernane é o artilheiro do time, já um pouco mais rodado (27 anos) mas que só agora chegou à maturidade técnica superando as dúvidas que a própria torcida fanática tinha até há alguns meses. É ídolo e retrato do atual campeão. Foi decisivo em boa parte dos jogos, mas não tiremos o mérito de Paulinho na final.

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Carles: Se entendi bem, esse título funciona como um potente analgésico para os males mais imediatos, mas pode ser um mau remédio para as doenças crônicas do clube.

Edu: Não acho que seja uma grande dificuldade um clube com tantos problemas administrativos, que vem arrastando há anos, ser campeão (aliás, tricampeão da Copa). Claro que será um problema se os dirigentes se derem por satisfeitos. Está mais do que claro que o Flamengo só chegou onde chegou por uma conjunção de fatores que nada têm a ver com planejamento, embora, insisto, ninguém possa contestar o título. O que será desses jovens jogadores na Libertadores? Como o clube pretende ajeitar tantos desmandos que foram cometidos nesta temporada? A aposta por um técnico inexperiente vai continuar? Como enfrentar os muitos problemas financeiros que a instituição potencializou nos últimos anos? O maior medo - e mesmo a eufórica torcida sabe disso - é que o título mais uma vez seja uma máscara para o mal-feito.

 

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