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Diálogo intercontinental sobre futebol, com toques de política, economia e cultura.

O futebol espanhol à beira de uma devassa

Edu: No ano em que o Brasil recuperou boa parte de seu prestígio com a vitória na Confecup, a temporada terminou com péssimas imagens, revivendo velhos fantasmas: tapetão e violência nos estádios. Pelo jeito, vocês tampouco estão vivendo num mar de rosas depois que a Comissão Europeia colocou em xeque o modelo administrativo do futebol espanhol.

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Por Carles Martí (Espanha) e José Eduardo Carvalho (Brasil)
Atualização:

Carles: Faz tempo que o esporte espanhol anda na mira do resto da Europa, provavelmente porque não se conseguiram nos gabinetes um modelo à altura da evolução dentro dos campos de competição. Reflexo de uma sociedade que segue valorizando mais o capital do que o "saber fazer". Bruxelas quer saber como os clubes espanhóis conseguiram se financiar. Curioso é que já faz mais de 10 anos, muitos já questionávamos coisas estranhas tais como a requalificação dos terrenos da antiga cidade esportiva do Real Madrid, então zonas não urbanas. Com isso, o clube vendeu os terrenos a peso de ouro para poder reconstruir um novo e moderno centro de treinamentos em Valdebebas, até então uma zona rústica desvalorizada, e embolsar o que sobrou dessa operação especulativa. Isso só foi possível com o favorecimento da Prefeitura madrileña. A fórmula foi copiada por muitos outros clubes e durante muito tempo, os fanfarrões do capital se gabaram de dar o "pelotazo", o golpe. Diz-se até que algum eurodeputado, torcedor e sócio do Athletic de Bilbao, fez de tudo para retardar o início das investigações. Teme-se que o clube basco tenha que devolver parte de grana usada para a construção do novo San Mamés. E o presidente do Sevilla, Del Nido, foi condenado à prisão, entre outros.

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Edu: Mas o que chamou a atenção por aqui foi a reação irada do mundo do futebol, comandado por Florentino Peres e com a conivência das instâncias políticas, denunciando uma suposta campanha europeia contra a marca Espanha, construída com muitas vitórias no esporte nos últimos anos - futebol, basquete masculino, Nadal, Fenando Alonso e tantos outros. Está claro: a intenção de fazer uma cortina de fumaça para encobrir o que foi mal feito é uma tática surrada, mas que funciona quando há um grande apelo popular, como as conquistas do esporte. Nada como despertar velhos sentimentos nacionalistas. Só que desta vez as denúncias pegam todo mundo no futebol, grandes e pequenos, e alguma resposta terá que ser dada à Europa por mais que o governo do seu prezado Rajoy tente colocar panos quentes, como se tivesse moral para isso.

Carles: Não seria de se esperar outra reação de Florentino, praticamente inventor da receita e também dono de construtora, frequentemente vencedora de concorrência para construção de obras públicas e não só em Madrid ou na Espanha, mas no Brasil também. A marca Espanha é isso, uma marca publicitária, vazia de maior significado prático e portanto sujeita às oscilações de mercado. A dona do bar em Málaga, que há décadas serve um "pescaito" delicioso a centenas de turistas todos os anos, vai ter que seguir se virando para cobrir gastos. Por muito que tentem convencer de que perdemos todos, quem realmente perde com as possíveis investigações são os tubarões e, claro, é momento de utilizar o depoimento dos grandes nomes do esporte para tentar tampar o sol com peneira. À população interessa que tudo seja esclarecido, mesmo que num princípio algumas fontes sequem.

Edu: O que você não pode negar é que houve, de fato, e muito antes de o Florentino se manifestar, uma blitz dos poderosos da Europa com o objetivo de denegrir a imagem dos esportistas espanhóis, cujo estopim foram os episódios de doping no ciclismo. Respingou em praticamente em todo mundo que vinha de conquistas recentes. Por outro lado, o que a gente pode chamar de 'mundo real' do futebol visivelmente se curvou à superioridade espanhola, basta ver a quantidade de jogadores que o país exportou aos vizinhos nas últimas temporadas. Mesmo assim, na questão das engenharias financeiras nada transparentes, será provavelmente impossível aos cartolas espanhóis se livrarem de uma devassa nas contas.

Carles: Como eu disse, a evolução dentro do campo, das pistas, das quadras foi evidente, mas isso realmente se deve ao trabalho de base, realizado em outros níveis e priorizando a construção de infraestruturas e aumentando a capacidade de formação no esporte de base. Por isso, a Espanha virou esse celeiro de campeões, aparentemente de uma hora para outra. Isso de alguma forma despertou a atenção dos campeões de sempre, de culturas acostumadas a planejar a longo prazo e obter o resultados num ritmo continuo, mas muito mais lento. Essa, na verdade, é uma velha rixa que se manifesta faz tempo inclusive com certo inconformismo ao ver o Brasil, por exemplo, ganhar tantos títulos mundiais, sem o planejamento esportivo a que eles estão habituados. Daí a atacar, aproveitando o telhado de vidro do esporte espanhol, foi só um passo. O problema é que andaram fazendo muito telhado de vidro por aqui.

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Edu: Sabemos muito bem o que é isso, inclusive pelas consequências de se ter um imenso telhado de vidro nacional. De todo jeito, até que ponto o que vem por aí em matéria de investigação institucional pode afetar as conquistas do esporte espanhol? Em que medida os escândalos financeiros podem enfraquecer essas estruturas que foram montadas, trazendo ótimos resultados?

Carles: Acho que as consequências podem ser drásticas. Porque o esporte de alta competição se acostumou ao luxo e é difícil voltar a se conformar com os poliesportivos de bairro, verdadeiros berços dessa geração vencedora. Além disso, aberta a porteira da construção de grandes obras faraônicas, deixou-se de construir essas instalações de base para investir em edifícios "emblemáticos", dentro dessa linha tão superficial que eles chamaram de marca Espanha. Instalações como o Àgora de Valencia, complexo multiuso, com a pretensão de albergar torneios ATP Grand Slam e que, pelo jeito, vai acabar sem uso nenhum. Ou, ainda em Valencia, o circuito de rua, clone de Montecarlo, para a F1. Quanto a possíveis sanções, não descarto até uma cassação de algum título, o mais vulnerável talvez, uma medida para dar exemplo. Num cenário desses, não seria de se estranhar que a garotada começasse a perder algo de motivação com o esporte. Assim mesmo, é bom lembrar que a crise é principalmente social. O resto, incluindo a do esporte, é marginal mas, claro, diretamente afetada.

 

 

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