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Diálogo intercontinental sobre futebol, com toques de política, economia e cultura.

Nos tempos da emoção à flor da pele

Carles: Li que a transmissão radiofônica dos jogos no Brasil será só via banda FM e não mais na AM. Aproveitaram para dar uma reciclada no formato para poder concorrer com a transmissão pela televisão? Aliás, o sistema da tevê da Globo lembra muito o 'Carrusel Deportivo' das rádios espanholas...

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Por Carles Martí (Espanha) e José Eduardo Carvalho (Brasil)
Atualização:

Edu: Na verdade este será o último ano das rádios AM no futebol, uma despedida em plena Copa, depois, só FM. Mas nem acho que o problema seja a concorrência da TV, porque, nós que crescemos ouvindo jogos por rádio, sabemos que não tem comparação, principalmente porque o rádio alimenta os sonhos, a experiência sensorial do futebol. Ainda mais com a dinâmica do 'Carrusel', que ouvi muito quando estava por aí. As chamadas frenéticas dos locutores presentes em todos os campos em uma tarde de domingo na Liga - incomparável.

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Carles: Pois é, tenho muito boas lembranças de um tempo em que ainda tinha moleque trotando por esta casa e em que era uma tradição ir ao chalet (a chácara) aos domingos para uma paella feita na lenha. Depois, a "sobremesa espanhola", com café, chupito e tertúlia em família. E, na volta para casa, ouvindo no rádio do carro toda a rodada, com intervenções e narrações quase simultâneas de todos os jogos. Foi aí que surgiu mais uma das minhas teorias, a do artilheiro lusco-fusco.

Edu: O formato do 'Carrusel' tem a cara da Espanha, mas não tenho dúvida de que seria muito bem recebido por aqui. No rádio esportivo brasileiro, os sinais eletrônicos determinam se houve um gol, que algo ocorreu em outro estádio que não o palco da narração principal. De quando em quando é anunciado um giro informativo com os marcadores. Mas o 'Carrusel' é adrenalina o tempo todo e mais quando acontecem gols em série, em vários estádios, com os locutores anunciando praticamente ao mesmo tempo. Esses gols em série têm algo a ver com a teoria do lusco-fusco?

Carles: Eu gosto muito do formato, se bem que acho que se o 'Carrusel' tivesse se firmado por aí, talvez o perfil dos narradores na América do Sul, tão admirados pela velocidade que imprimem ao jogo, muitas vezes nem tão dinâmico, fosse outro. O desenvolvimento da tecnologia e a instalação de equipamentos que permitiram interligar um país do tamanho da Espanha também facilitaram as coisas. Seja como for, não posso perder a oportunidade de expor a teoria que desenvolvi ouvindo o 'Carrusel Deportivo' no rádio, naquela hora que a gente voltava da paella. Podia ser às cinco na época do equinócio ou às nove no solstício. Mas tinha uma hora, quando as sombras venciam a luz do dia e os holofotes ainda não conseguiam compensar o lusco-fusco, em que eu previa: "É agora" e começavam a soar compulsivamente os sinais sonoros que anunciavam gols e mais gols por todo o país. Não tinha catenaccio que resistisse nem goleiraço que não se visse afetado pela pouca visibilidade do lusco-fusco.

Edu: Concluímos, então, que o lusco-fusco é comparsa do futebol ofensivo? Pode ser. É aquela hora meio indefinida, os beques estão absortos, os goleiros desconcentrados... Pode ser mesmo. E para os locutores românticos do rádio essa hora é um prato cheio de romantismo, com suas narrativas sobre o ambiente, as cores, as luzes. O entardecer tem a cara das transmissões radiofônicas.

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Carles: Também pode ser um efeito ótico mesmo, aquela linhazinha da luz do sol, ainda por cima rebatida que cai justamente no olho do goleiro ou do zagueiro, no ponto exato da parábola que a bola cruzada ou lançada com picardia costuma traçar. Quem sabe não tinham razão aqueles goleiros europeus que basicamente vimos nas figurinhas sempre usando uma boina (além de joelheiras e cotoveleiras), lembra? Mas vai perguntar às marcas esportivas se agora pode...

Edu: No rádio, as marcas esportivas importavam menos e até as mensagens publicitárias eram mais criativas. Narrativas românticas, lusco-fusco, emoção, eletricidade e a força dos locutores com suas transmissões à flor da pele... Nem o mercado conseguiu destruir esse encanto. Boas lembranças e imagens para homenagearmos uma dessas vozes que justamente hoje nos deixou, Luciano do Valle.

Carles: E, como tantos, ele mesmo começou no rádio...

Edu: E acabou virando a voz do futebol, do vôlei, do boxe, sem deixar de ser um homem de marketing. Enfim, marcou gerações esportivas. Modestamente, o 500 aC faz a ele esse reconhecimento.

 

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