PUBLICIDADE

Foto do(a) blog

Diálogo intercontinental sobre futebol, com toques de política, economia e cultura.

'La Roja', últimos suspiros de uma geração encantada

OS 32 DA COPA (31)

Por Carles Martí (Espanha) e José Eduardo Carvalho (Brasil)
Atualização:

Edu: É sintomático como a Espanha chegou a seu grande momento esportivo e, ao mesmo tempo, expôs alguns dos maiores contrastes sociais do futebol. É a Liga mais rica, ou ao menos com os jogadores mais valorizados, mas tem um dos maiores abismos entre clubes pobres e ricos. Conquistou os principais títulos em cinco ou seis anos, mas tem um sistema de gestão que, entre outras coisas, mantém no poder o presidente da federação (Angel Villar) há oito mandatos. Movimenta fortunas em patrocínio e verbas televisivas, mas tem a sociedade fracionada pelas consequências das crises financeiras internacionais. Tem sido animada a vida de vocês, ainda mais agora com a sucessão no trono.

PUBLICIDADE

Carles: Você, como historiador, sabe que causa e efeito, por definição, não costumam conviver no tempo. Os ótimos resultados recentes dos povos espanhóis no esporte, certamente, respondem a tempos de democratização política quase explícita e econômica (não saberia dizer o quanto), inclusive na oferta de instalações para a prática poliesportiva a todos, espanhóis ou residentes. Não faz muito, era grátis poder frequentar centros esportivos muito completos e públicos, em cada bairro ou município e também tínhamos um modelo de saúde pública universal, exemplar. Já não é assim, por pressão da iniciativa privada. Sabemos, você, eu e a maioria dos leitores como é difícil derrubar as oligarquias, o poder estabelecido e imóvel, seja uma monarquia que não passa pelas urnas ou outros centros de poder pouco legítimos, como é o caso da presidência da Real Federação Espanhola, com um sujeito reacionário e sem carisma à frente, reeleito à base de igrejinhas, de acordos quase conspiratórios com pequenos mas poderosos grupos, e graças a um sistema de eleição arcaico. Tudo isso que eu vomitei deve ter relação entre si e com a sua pergunta, mas confesso que eu mesmo teria dificuldade de conectar tudo, assim, de bate pronto. Eu e a maioria dos espanhóis.

Edu: Talvez estejam aí algumas razões da movida espanhola - por aqui, somos experts nisso de desfrutar de boas coisas extraídas dos períodos caóticos. Do que ninguém duvida é que a redemocratização criou outras paisagens, por mais que as oligarquias ainda comandem muitos segmentos. O futebol espanhol - como o tênis e algumas modalidades olímpicas clássicas e antes elitistas - cresceu com a popularização, com a abertura política. E nunca esqueceremos de que o futebol foi capaz de unir, em algum momento, setores tão antagônicos da sociedade, como naquela semana que se seguiu ao título na África. Mas, nostalgia à parte, chegou a hora de o time campeão do mundo se reinventar, como boa parte dos setores constituídos. Ou não?

Carles: Chegou sim, mas nosso ritmo é outro, primeiro pensamos, aí conversamos, então pensamos um pouco mais e, quem sabe, fazemos. Tudo tem uma certa liturgia que deve ter-se perdido em alguma porão de alguma caravela a caminho do novo mundo. Como nada é perfeito, outros imperialistas levaram a burocracia, famosa por criar dificuldades para poder vender facilidades. Pero vamos al grano (viu como nos é difícil?). La Roja chega ao Brasil claramente envelhecida e eu diria que grande parte da culpa é da Eurocopa 2012. Sem aquele título, a renovação já estaria mais avançada, mas fica difícil desafazer-se de toda essa gente cheia de medalhas no peito, assim, por decreto. Contudo, é até possível, se todos os astros confluírem adequadamente, que tenhamos a fusão da explosão do velho estilo raçudo, na pele de um brasileiro, com o tique-taca, representado por um espanhol, veja você. A conexão Andrés Iniesta-Diego Costa poderia começar a revolução, se não de nomes, pelo menos de identidade. A tal reinvenção.

Edu: O Brasil terá a honra, então, de assistir aos últimos suspiros da geração que encantou o futebol mundial? Acho que já sei a resposta: sim, será o capítulo final. Ainda que Iniesta siga por mais algum tempo, estandartes como Iker Casillas, Xavi e Xabi Alonso, sem contar os já virtualmente aposentados Torres e Villa, serão glórias do passado a partir de agosto. O honorável Vicente del Bosque preferiu não estropiar suas raízes familiares e, outro dia, justificou sua opção pelos 'vovôs' dizendo que, mais do que táticas mirabolantes, o que ganha títulos é o bom ambiente no vestiário. É um parnasiano o bom Marquês. Ao mesmo tempo, se queixou de que muitos jogadores já não têm o 'olhar da ambição'. Com isso, não conseguimos ainda saber que Espanha teremos aqui, se bem que tenho um palpite: nada de reinvenção, será a mesma Roja da Copa da África, sem tirar nem por, no máximo com Diego Costa fazendo de David Villa.

Publicidade

Carles: Prefiro pensar que Torres e Villa, além de serem marcas ainda com muito mercado, poderiam ser parte da aposta de Del Bosque em Costa. Tento explicar. Com mais artilheiros - de glorioso passado, nestes casos - dentro do plantel, tira-se um pouquinho da pressão e responsabilidade do Diego, a quem não falta essa ambição - não no olhar precisamente -. Como você mesmo disse ontem, uma Copa tem vida própria, é um campeonato que está a salvo do enfadonho poder do planejamento e no que ninguém sabe o que pode acontecer. Pode até que, inesperadamente, a estrela do Niño Torres volte a brilhar e que Diego chegue a Stamford Bridge um pouco mais murcho. Eu poderia jurar que Xavi e Villa já deram tudo o que podiam, mas são tão bons sujeitos...

Edu: Há um anabolizante moral que pode fazer o 'olhar da ambição' retornar, que é o efeito causado pela derrota na final da Copa das Confederações. Mesmo que a Espanha não tenha feito questão de dizer que levou a sério aquele torneio, os ecos da derrota no Maracanã deixaram cicatrizes, o que pode ajudar Del Bosque a sacudir o vestiário. Seja como for, o time que chega a Curitiba daqui a alguns dias é visto em todos os levantamentos e palpitarias de especialistas e torcedores brasileiros como top de linha, ao contrário dos tempos bicudos. É certo que a estreia contra a Holanda pode definir o que será o time campeão do mundo dali por diante, mas a diferença de outras épocas é que os adversários hoje entram para enfrentar a Espanha com outra noção de respeito.

Carles: Complicado enfrentar logo de cara uma seleção meio blasé e na segunda rodada um verdadeiro osso duro de roer. Ao seu estilo, tanto Holanda como Chile, respectivamente 15ª e 13ª no ranking Fifa, são mais competitivos que em 2010. Teoricamente, a seleção espanhola de agora, menos que a de então. No mínimo, isso iguala um pouco as coisas. Sinceramente, eu não arriscaria um palpite sobre qual dos três fica fora. E tudo depende, como você disse, da atitude que os espanhóis demonstrem em Salvador, no dia 13. Pelas imagens que chegam de Washington, Diego Costa já faz parte do grupo em corpo e alma. Aliás, Diego não é o primeiro brasileiro colchonero a defender La Roja. Antes teve um gaúcho, Heraldo Bezerra - ex do Cruzeiro e um dos "tres puñales" do temível ataque atleticano que tinha também Gárate e Ayala, campeões da Liga em 1973 e 1977, de duas Copas del Rey e uma Intercontinental. Bezerra vestiu a camiseta da seleção espanhola uma vez só, no dia 17 de outubro de 1973 para enfrentou a Turquia, dizem, com passaporte falsificado. Depois dele vieram outros brasileiros naturalizados como Donato, Catanha e Senna. Sem contar híbridos como Thiago Alcântara ou futurível Rodrigo, ex do Madrid e do Benfica e provável estrela do Valencia 2014-15.

Edu: A impressão que fica é que, no fundo, os espanhóis, como sempre, são os mais desconfiados de seu timaço. Estamos falando do país que comanda o ranking da Fifa há não sei quanto tempo e que se tornou referência de estilo. Salvo um desastre cósmico, veremos a campeã do mundo seguir até as fases decisivas, no mínimo. Não me façam essa desfeita com a Copa, por favor.

Carles: Desconfiados como sempre. Otimistas de chegar à final do Maracanã? Respondo no dia 13 depois de tentar adivinhar se a alegria desse time campeão voltou a contaminar o vestiário. E quanto à ambição - ou ilusão, eu diria - nada melhor do que uma passadinha pelos EUA. Se não me engano, é lá onde isso se fabrica.

Publicidade

 

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.