Foto do(a) blog

Diálogo intercontinental sobre futebol, com toques de política, economia e cultura.

Internacionalização de mão única

Carles: Ontem, quando dávamos conta dos primeiros ecos da Confecup, incidimos na importância que a experiência internacional poderia ter na formação profissional. Precisamente, falamos das vantagens de a Seleção Brasileira ter muitos jogadores militando em clubes europeus e reforçamos com a ideia de que uma saída da Espanha poderia revigorar a carreira de David Villa. Pelo que li hoje, uma ideia rejeitada por muitos jornalistas brasileiros, apoiados num orgulho nacionalista e numa certa confusão de conceitos. E você, também acha indiferente sair ou seguir jogando no país e descartar a possibilidade de um intercambio cultural e profissional?

PUBLICIDADE

Por Carles Martí (Espanha) e José Eduardo Carvalho (Brasil)
Atualização:

Edu: Evidente que não, tanto que concordamos aqui nestas linhas que até jogadores extra-série como Neymar precisam dessa vivência, principalmente como proposta de crescimento pessoal. Mas, com isso, você elabora uma espécie de conclusão sintética sobre o que mais pesou para a derrota da poderosa 'Roja' no Maracanã?

PUBLICIDADE

Carles: É esse justamente o ponto. Se dermos a volta na questão, na final do domingo, o adversário do Brasil demonstrou justamente essa falta de vivência, uma inibição fora do comum para um time campeão do mundo, provavelmente pela falta de experiência fora do seu próprio continente. Foi, acredito, um fator de grande peso, não para a derrota, mas principalmente para a grande diferença de jogo e iniciativa demonstradas pelas duas equipes.

Edu: A manifestação impressionante da torcida e a ferocidade com que o Brasil entrou para o jogo têm uma clara relação. Mas, como princípio, é um pouco reducionista pensar que caras com a bagagem de Xavi, Casillas, Iniesta e Piquet, para citar só alguns, ainda sejam afetados tanto assim pela pressão cênica. Claro, tem peso, mas não poderia ser tão determinante para jogadores que vivem em constantes situações parecidas com seus clubes, em tantas andanças pela Champions. Barça e Madrid são recebidos em enormes 'panelas de pressão' pela Europa. Sem contar a própria experiência na seleção. Na sua visão, ainda falta alguma coisa mesmo para esses caras?

Carles: Com uma diferença fundamental, a interação, a sinergia dos jogadores com a torcida é um traço particular, algo que não se vive por aqui, exceto em terrenos como os de Turquia ou Grécia, normalmente compromissos complicados para os espanhóis. O que foi vivido no Maracanã impressionou e bloqueou muitos deles. Ramos e Jordi Alba, entre outros, estavam visivelmente intimidados e nervosos. Imaginemos, agora que Thiago Alcântara, principal candidato a ocupar o lugar de Xavi na "Roja"e que  vive um futuro incerto no Barça, pudesse acabar jogando em alguma equipe brasileira neste ano que nos separa da Copa, numa espécie de estágio preparatório. Certamente, se na Copa tivesse que se enfrentar a um ambiente como o de domingo, suporia um menor impacto.  Não é uma proposta, mas uma forma de ver a questão da importância da internacionalização desde o outro lado. E de demonstrar que essa vivência, como a dos brasileiros que jogam ou jogaram fora, pode ser uma vantagem.

Edu: Aí acho que a gente já se aproxima de um ponto que fica mais esclarecedor na relação entre o futebol europeu e o sul-americano. Há estes motivos ligados à vivência num ambiente diferente, o papel apaixonado do torcedor, pressões de níveis distintos do contexto europeu. Mas há também a questão da desinformação, por falta de interesse às vezes, do europeu em relação ao sul-americano, ao brasileiro em particular, talvez pela questão da língua, ou por razões históricas, de raízes. Hoje, o brasileiro que acompanha futebol é um torcedor sem fronteiras, se informa de tudo, conhece Iniesta e Pirlo com a mesma intimidade que tem com os craques daqui. Torcedores e jogadores europeus, ao contrário, consideram seus campeonatos e suas disputas regionais como o centro do mundo, e, o pior, não vêm essa falta do conhecimento exterior como um déficit. Não é de se estranhar que se surpreendam quando vêm para estes lados. Não estou dizendo que é por prepotência colonialista, embora ainda ocorra. Trata-se de um vício cultural mesmo. Um vício daninho.

Publicidade

Carles: Evidente que existe essa espécie de unilateralidade, talvez por desinteresse dos europeus pelas culturas sul-americanas, a não ser como destino turístico, talvez pelo maior alinhamento da América Latina com a cultura norte-americana, fator que também distanciou um possível interesse. Outro aspecto é o sistema de comercialização dos direitos de transmissão dos campeonatos locais. Nas sociedades sul-americanas sempre existe uma faixa consumidora disposta a pagar o preço normalmente elevado do pay-per-view. Tudo isso e muito mais que poderíamos enumerar aqui durante horas contribui para formar esse quadro. Só que eu me refiro mesmo à vivência pessoal, dos bastidores, dos estádios, das distintas idiossincrasias em contato direto. Isso não se aprende nem na escola, nem pela televisão, nem por internet. E serve tanto para a atividade esportiva como para a maioria das profissões.

Edu: Tem razão, é outro tipo de intimidade. Mas a informação ajuda muito, Carlão, não dá para desprezar esse tipo de conhecimento essencial neste mundo. E muitos centros europeus desprezam acintosamente. Por outro lado, vários brasileiros que saem daqui para jogar na Europa regridem profissionalmente,  por falta de oportunidades, por serem utilizados fora de suas prioridades técnicas, ou por uma série de outros motivos. Veja Lucas, que chegou a deslumbrar em algumas poucas partidas pelo PSG. Foi a peso de ouro para um campeonato medíocre, jogou eu um time que fez do título uma barbada por falta de adversários e estancou tecnicamente. Mora em Paris, tem todas as condições para exercer sua profissão, já conhece o contexto, tem intimidade com os mecanismos, mas não evoluiu.

Carles: Para Lucas, um talento futebolístico em explosão, eu diria e sem a intenção de apoiar meus argumentos em visões estereotipadas, que o melhor destino não seria a liga francesa e muito menos o projeto ainda ambíguo o PSG. Mas você tem razão, não são poucos os exemplos de regressão. Por isso o que eu defendo é uma imigração pensada, como aperfeiçoamento. Só que esse desenvolvimento depende de variáveis como a capacidade, o talento ou a maturidade. Alguns jogadores de nível médio praticamente forjaram seu estilo de jogo na Europa e deixaram de oferecer esse interessante coquetel multicultural. Não é o caso de Lucas, claro. Em outros casos, a falta de temperamento pode fazer com que fatores de ordem emocional acabem preponderando. E tem ainda a escolha do destino equivocado, por ganância, e que talvez seja mais o caso de Lucas.

Edu: Justamente por falta de informação, até de seu entorno pessoal. Chega uma proposta estratosférica, falando de um projeto grandioso, da conquista da Europa, etc. O cara obviamente fica seduzido mais por isso do que pela vivência em si, se não estiver bem orientado. Mas voltando ao ponto de vista europeu, as grandes mecas são sempre as mesmas - Premier, Calcio, Liga e Bundesliga. Não é de se estranhar que a América do Sul fique fora desse 'circuito de vivências'. Só que isso terá sempre um preço a pagar no mundo do futebol.

Carles: Obviamente e fica evidente pelas saídas dos dois destaques brasileiros, Neymar e Paulinho, para clubes europeus. Ninguém é ingênuo de achar que se deva só à preocupação dos seus assessores e familiares pela evolução profissional deles.

Publicidade

Edu: De todo jeito, é difícil ter a certeza de que os brasileiros aproveitam melhor esse intercâmbio, simplesmente porque não temos como comparar. A não ser com as histórias dos próprios brasileiros que retornam da Europa, trazendo resultados de experiências fracassadas ou por serem já veteranos. Não vejo como mudar esse eixo de mão única a curto prazo.

Carles: A mão única, difícil, por interesses mercantis. Mas uma mudança de direção sempre é possível. Temos visto coisas mais improváveis acontecerem.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.