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Diálogo intercontinental sobre futebol, com toques de política, economia e cultura.

Cuidado! Boleiros filosofando

Edu: Num dos mais antigos debates do futebol - o contraponto entre beleza e eficiência - não existe consenso possível, porque cada um tem uma ponderação ou uma ressalva a fazer. Nós mesmos, que tantas vezes aqui defendemos a estética e o talento, já tivemos nossos prós e contras no momento de discutir eficiência. Muito antes do nascimento do futebol, o filósofo Friedrich Schiller, um dos grandes do Romantismo alemão, defendia  que o jogo, como prática recreativa, exige sensibilidade e também pragmatismo, algo como dizer que não seria possível entender o que é belo sem o contexto da disputa, mas ao mesmo tempo o contexto não teria muito sentido sem a presença do belo.

Por Carles Martí (Espanha) e José Eduardo Carvalho (Brasil)
Atualização:

Carles: Pelo que sei, as teorias de Schiller alertam para a necessidade de não descuidar a plenitude do ser humano, em que deveriam conviver os dois aspectos, necessários e complementares. Obviando o aspecto lúdico, isento de qualquer obrigação moral, não é possível alcançar essa plenitude. Se considerarmos que ele nasceu no século XVIII, não é difícil concluir que os tais "males da vida moderna", de um ser social cada vez mais racional, infeliz pelas suas obrigações das quais pouco desfruta, não é algo tão recente. O distanciamento da vida contemplativa, mercê do "progresso" de uma sociedade industrializada, realmente parece que condena à fogueira aqueles que buscam a beleza antes da eficiência, quando estas nunca deveriam estar desassociadas. O pior ou talvez uma das causas está justamente nas mudanças curriculares na educação, em que foi sendo abandonada a formação humanista, com matérias como filosofia, arte, música dando lugar a uma cada vez maior carga horária de informação pura, sem chance para a reflexão e a interpretação própria. O excesso de conhecimento técnico visando uma aplicação prática e imediata, sem um processamento pessoal, acaba se transformando nesse brete de regras que dão poucas chances à liberdade de criação. E, como diria Schiller, acaba formando homens truncados para todos os setores de atividade.

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Edu: Estamos falando de um ícone intelectual da escola romântica, que já levantava uma certa desilusão humanista há mais de dois séculos, logicamente com uma visão muito além do seu tempo. Mas, sem a intenção de reduzir a discussão, gostaria de me ater à Teoria do Jogo que ele propôs, e que tem tudo a ver com a situação social daquela época e com visíveis semelhanças com o nosso momento. Me parece que o filósofo nunca pregou que o conhecimento técnico era desnecessário, mas deixava claro, isso sim, que deveria haver uma 'educação para o bom gosto e para a beleza', assim como existe uma educação para o pensamento e uma educação voltada à moralidade e à convivência. Na minha modesta associação com o futebol-jogo, entendo que talvez seja o que falta aos pragmáticos, uma educação para o bom gosto.

Carles: Exatamente o que eu disse ter entendido, que o problema é o desequilíbrio entre o aspecto técnico e o intuitivo. Aliás, nem é o equilíbrio, mas a permanente junção de ambas as polaridades. Numa linha de montagem, não deve haver surpresas e enquanto esse tipo de produção necessitou do homem, houve especial empenho em coibir as iniciativas. Com a automatização, o fator humano passou a ser prescindível, o que não acontece em atividades em que a iniciativa é imprescindível ou a intuição é essencial. Num jogo, sem o inesperado, a ação com a mera aplicação da técnica é muito mais neutralizável. Falemos de um craque do passado, Van Gohg, cujo desejo era ir para Paris, num princípio, para aprimorar sua técnica de desenho. O talento, ele descobriu enquanto atendia a comunidades de mineiros belgas, cuja vida miserável e sacrificada, segundo ele mesmo escreveu ao irmão, despertou-lhe uma certa necessidade de expressão. Ele buscava a perfeição técnica e acabou alcançando níveis máximos de expressão, e foi através de algo mais do que precisão ou perfeição. Na educação, métodos como o de Piaget, seguidor de Schiller, utilizam jogos e outras atividades lúdicas  com o propósito de distrair a vigilância do consciente e romper as barreiras racionais, de forma que o indivíduo possa desenvolver livremente seus instintos.

Edu: Não sei se o que você chama de 'vigilância do conscient' são os regulamentos, as diversas normas que regem nossas vidas nas mais diferentes atividades humanas, das mais sérias às mais divertidas. O que é possível acontecer, segundo o digníssimo Schiller, e o que eu acho admirável na proposição, é que as belas expressões estéticas não estão vinculadas necessariamente apenas ao lúdico. É possível fazer arte - talvez como fazia Van Gogh - dentro de um contexto de eficácia. Todo regulamento ou conjunto de normas é, em princípio, castrador, engessado, um tanto totalitário. Mas não significa que a criatividade será tolhida. Talvez o sujeito que consiga ser criativo dentro das tais normas totalitárias possa ser ainda mais talentoso do que o lúdico, porque consegue 'iludir' inclusive o engessamento das regras. O poeta do futebol é esse aí.

Carles: As regras são castradoras se elas prevalecem de forma absolutistas sobre o instinto. Como alguém que, depois de aposentado, decide voltar a pintar, por exemplo. Num principio se trata de misturar tintas e usar o pincel sobre a tela livremente mas, com o tempo, e para poder expressar todas as inquietudes, surge a necessidade de aperfeiçoar as técnicas, de conhecer algumas regras cromáticas ou normas que permitam conduzir o observador através da obra. Para trazer a coisa para o terreno do nosso assunto diário, veja você o comportamento de Neymar desde que chegou ao Barça. A desconfiança sobre o possível êxito ou fracasso dele não dizia respeito ao talento, mas à forma como ele iria dosar a eficiência, as regras de um jogo coletivo e em que medida ela iria utilizar recurso individuais. Ele surpreendeu justamente pelo rigor com que se submeteu às regras existentes no grupo e voltou a surpreender ao quebrar essas regras esporadicamente e in crescendo, como naquela jogada contra o Milan em que driblou toda a defesa com habilidade, técnica, mas, sobretudo, rompendo as expectativas e usando o seu instinto.

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Edu: Então chegamos ao ponto. Cada vez parece mais claro que o talentoso tem uma interpretação especial das regras, algo que os defensores da eficácia não conseguem entender porque sempre interpretam a preferência estética do ponto de vista do resultado. Se o drible é objetivo, muito bem, se não é, não serve. E não é bem assim. O talentoso não se contenta com o corriqueiro. Até para entrar no tiqui-taca do Barça, Neymar faz algo diferente, recebe a bola, dá uma 'penteada', uma puxadinha de lado, e só então faz o toque em direção ao Iniesta. Ele não se satisfaz com a rotina.  Na verdade, é um conceito de estética que talvez o Schwainsteiger, o Mourinho, o Jüergen Klopp não alcancem. São obcecados pela eficiência e de certa forma venceram na vida desse jeito. Mas não valorizam a diversidade.

Carles: Tem razão, chegamos ao ponto, ao ponto em que normalmente seguimos os nossos próprios caminhos, a nossa particular interpretação. Estamos de acordo que essa dualidade é justamente o que dá a riqueza e, provavelmente, é o que viabiliza o livre alvedrio. É o que dá autonomia, é o que surpreende, mas não de uma única forma. Como disse, a aplicação de atividades lúdicas na educação visa justamente permitir que cada um construa sua própria versão e isso depende, entre muitas outras coisas, das relações familiares, sociais e culturais. O conceito de criatividade de Neymar é um e o de Klopp é outro, mas ambos oferecem os seus particulares traços de rebeldia. Mesmo Mourinho, a meu ver, se destaca por uma particular releitura das regras, e acrescenta sua pequena parcela de transgressão. Valorizar a diversidade é reconhecer o mérito do estilo multicolor de uma obra de Neymar ou do classicismo de Schwainsteiger. A intolerância a um ou outro e portanto à diversidade, a gente enocontra aqui, acolá e na Terra do Fogo.

Edu: Com tantos conceitos, divergentes e convergentes, amanhã, quando assistir a mais um joguinho qualquer, acho que já não terei a mesma visão de antes. É o que acontece quando os boleiros resolvem filosofar...

 

 

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