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Diálogo intercontinental sobre futebol, com toques de política, economia e cultura.

Aperfeiçoar para sobreviver

Carles: Tem uma coisa que eu não consigo entender, bom, acho que no fundo conheço as razões. Por um lado, vejo a desesperada necessidade de a maioria dos setores profissionais em aperfeiçoar-se tecnicamente, numa preocupação até obsessiva. E por outro, um certo descaso dos jogadores de futebol com a própria evolução. Normalmente, chegam a um time profissional com um bom contrato e estacionam. Lembro de como Ronaldo Fenômeno celebrava efusivamente quando fazia um gol de cabeça. Ele, centroavante, 1m82 de altura, goleador, craque e com certa deficiência num fundamento tão decisivo. Se tivesse se empenhado poderia ter multiplicado os seus já impressionantes números, não?

Por Carles Martí (Espanha) e José Eduardo Carvalho (Brasil)
Atualização:

Edu: Qualificação né? É a isso que você se refere? O profissional procurar melhorar, como deve ser em qualquer profissão. Depende muito dele mesmo, mas tem relação também com a estrutura material e pessoal do entorno - o clube, os técnicos, a família. Se o jogador é meio desmiolado, alguém precisa dar um toque. Mas tem que ser cedo, quando ainda é possível corrigir e aperfeiçoar, mesmo para os craques.

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Carles: Estou falando mesmo é da sistematização dessa qualificação. Sabemos que existem jogadores conscientes ou bem aconselhados que ficam depois do treino para aperfeiçoar a batida de faltas, escanteios, pênaltis, saída de gol. Mas acho que na maioria dos casos existe acomodação e uma certa prepotência de acreditar que é um craque formado, sendo que o mais habitual é ter pouco mais de 20 anos. Se não fosse tão grande a resistência deles, provavelmente os clubes ofereceriam ou contratariam programas de aperfeiçoamento, como em qualquer outro setor de atividade.

Edu: É o tipo de coisa que não pode depender exclusivamente da atitude dos jogadores, porque eles têm posturas bastante heterogêneas, o que é comum nesse universo de múltiplas personalidades, onde convivem jovens explosivos, que não estão nem aí, com caras mais tranquilos, que podem refletir melhor sobre suas carreiras. O clube precisa dar um empurrão, precisa estimular, colocar algumas opções. Não é paternalismo, é estímulo. E os profissionais que trabalham com os jogadores também precisam de qualificação, é bom lembrar. Ao menos precisam de conscientização. Nem acho que seja resistência. Muitas vezes é por desconhecimento mesmo, de como a qualificação poderia ajudar na vida profissional deles.

Carles: Pois eu tenho minhas dúvidas. Outro dia, acho que foi o Marcelo que disse que ia treinar de manhã, duas ou três horas, e depois dedicava o resto do dia aos carros, a jogar videogame e ver TV. Claro que, na verdade, eles têm mesmo é que atender a uma série de compromissos comerciais, eventos, filmagens, etc. Quando Cristiano Ronaldo passou a fazer aquela jogada de contra-ataque que tanto  o Mourinho gostava, percebi que ele se descuidou da técnica de bater faltas, no que era um especialista. Não imagino o clube oferecendo a possibilidade de ele ir duas vezes por semana à tarde para receber lições sobre isso: "Venha Cristiano, o curso vai ser legal, vem Ramos, você, o Morata..."

Edu: Ué, se o clube oferece e o cara não utiliza, então o clube que o obrigue de alguma forma, inclua no contrato, faça alguma coisa para cuidar do seu patrimônio. Uma coisa é o jogador ter preguiça, outra é não ter consciência. Se há um programa adequado de aperfeiçoamento e o jogador não se engajar, vai pegar mal para ele profissionalmente. E, além disso, tem o papel da comissão técnica e principalmente do treinador. Telê Santana, que ao contrário do que muitos dizem não era nenhuma sumidade em matéria conhecimento tático, tinha, isso sim, obsessão por questões técnicas, por treinamento específico. Ficava até escurecer após os treinamentos exigindo que os laterais e os pontas que tinham deficiências em cruzamentos com a bola correndo e em cobrança de escanteios fizessem exercícios de repetição e aperfeiçoamento até a exaustão. É o tipo de atitude que o clube também pode propor, estimular e mesmo exigir de seu corpo técnico.

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Carles: Pois então, seja de quem for a responsabilidade ou deva ser a iniciativa, já está ficando tarde para que se tome essa atitude. Talvez seja um problema convencer os cristianos, os messis, mas os plantéis são muitos mais do que as estrelas e imagino que quando jogadores consagrados sentissem o perigo da concorrência, seriam os primeiros a aceitar. É bom lembrar que o aperfeiçoamento técnico não da lugar só ao aprendizado mas  principalmente ao intercâmbio de conhecimento. É uma oportunidade de treinar a generosidade entre atletas que praticam uma modalidade com o sobrenome "associação de jogo".

Edu: Nesse ponto, sou obrigado a reconhecer que os padrões de treinamento e aperfeiçoamento dos esportes norte-americanos estão muito à frente do soccer e poderiam trazer alguns ensinamentos importantes. Por lá, o cara faz preparação específica - de defesa, de transição, de posicionamento -, mas trabalha exaustivamente também nas associações, nas aproximações que o jogo permite, seja no basquete, seja no futebol americano e mesmo no beisebol, onde as particularidades das associações no contexto do jogo são ainda mais sofisticadas e complicadas de entender. O fato é que ali se descobriram formas eficazes de fazer os especialistas servirem o conjunto, mas, antes de tudo, há uma conscientização geral, de quem propõe (o corpo técnico) e de quem executa (o atleta).

Carles: Exatamente. A minha tese é de que o mundo do futebol só se profissionaliza em alguns aspectos e segue improvisando em outros. Estou convencido de que muitos dos apreciadores não estão de acordo comigo, considerando que a automatização excessiva pode prejudicar um esporte tão intuitivo e valorizado pela capacidade de improvisação. Mais um motivo para que os sistemas complementares sejam introduzidos por quem está dentro, quem conhece as peculiaridades do jogo e as suas necessidades. Se esse esporte tão popular já não é capaz de nos oferecer a sua beleza mais primária, pelo menos que ele chegue à pós-graduação de uma vez por todas.

 

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