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Diálogo intercontinental sobre futebol, com toques de política, economia e cultura.

Antídotos aos tubarões de prontidão

Edu: Falávamos outro dia da fase aguda de aprendizado do garoto que gosta de futebol, algo entre os 6 e os 12 anos. Se imaginarmos a quantidade amazônica de moleques que, nessa faixa, batem uma bolinha nas escolas, nos clubes, nos descampados e nas ruas, fica difícil entender com surgem tão poucos craques. Obviamente que existe uma seleção natural em função da qualidade, mas ainda assim é muita gente jogando futebol. Será que os craques estão por aí e o mundo do futebol é incompetente para descobrir onde?

Por Carles Martí (Espanha) e José Eduardo Carvalho (Brasil)
Atualização:

Carles: Não tenho a menor sombra de dúvida de que os que chegam nem sempre são os melhores e que, muitas vezes, alguns ou vários dos melhores acabam ficando pelo caminho. Existe uma série de circunstâncias que não ajudam a que todos os craques em potencial se transformem em futebolistas estelares. Inclusive porque muitos não estão dispostos a enfrentar os aspectos menos amigáveis do esporte de alta competição. Além de talento, ou melhor, mais do que o talento, é necessário disposição para passar anos e anos dedicando-se ao que pode virar nada. O apoio do entorno familiar que também deve mostrar máxima disposição ao risco, é decisivo. Fui testemunha ocular de uma ou outra peneira realizada pelo Valencia em que os meninos entravam em campo e tinham que demonstrar em cinco minutos que valiam o investimento do clube. Talvez tempo mais do que suficiente para aquele craque diferente se sobressair (se não for tímido). Só que o pior é que, durante os rachões, técnicos e olheiros muitas vezes nem olham para os meninos jogando e, no fim, ser selecionado depende do famoso QI - quem indica.

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Edu: A tal peneira, um sistema clássico, que existe no mundo todo com desenhos variados, até que é um caminho, se obedecer a critérios. Mas não é o único. Não é aceitável que os clubes que montam megaestruturas para seus craques já formados não tenham como fundamento número 1 a proposta de sofisticar minimamente seu processo de garimpagem. Para quem quiser, está tudo aí à disposição. Se falarmos de Brasil, há um mundo paralelo de disputas entre garotos, das favelas às escolinhas burguesas, passando pela estrutura educacional desde os primeiros anos. É uma imensidão e dá trabalho, não é função para preguiçosos, mas basta ir atrás. E não acho que seja diferente em outros países que privilegiam o futebol. Por outro lado, tem esse dado que você ressaltou: a família. Acontece que, muitas vezes, a família, no afã de proteger, mais atrapalha do que ajuda.

Carles: Atrapalha na descoberta de um possível craque mas consegue proteger dentro da ideia de uma vida sem uma exagerada competitividade. Nem todo mundo tem caráter para suportar esse tipo de vida. A historinha sobre as peneiras foi só para ilustrar que os caminhos para um galáctico são inescrutáveis e a sucesso depende da fortuna, das leis das probabilidades, de estar no lugar e na hora certa e de ser observado por olheiros minimamente competentes. Que não é aquele que assiste a um jogo de moleques e aponta os melhores. Isso qualquer aposentado cativo de campo de várzea consegue fazer. Se tivermos a pachorra de estudar o histórico de todos os times de base por onde passaram os atuais "Bolas de Ouro", comprovaremos que, na maioria das vezes, eles não eram nem de longe os destaques do time. Aconteceu com Messi, naquele infantil B do Barça. Ele era hábil, driblador, mas o destaque, segundo o treinador Xavi Llorens, era Mendy, bem mais robusto que que aquele menino mirradinho de 1m48. Eu pergunto: em que time de ponta joga Mendy que naquele campeonato de 2001 foi o craque e cansou de fazer gols? Não é suficiente entender uma barbaridade de futebol para escolher os possíveis futuros triunfadores. Existem outras qualidades que muitos poucos demonstram ter. E não pode ter preguiça, como você disse.

Edu: Insisto no papel da família no caso dos garotos naquela idade de aprendizado, até os 12 anos. E convoco o testemunho de pais que, como eu e você, viram os filhos em algum momento se dedicarem a um esporte - no meu caso, foi futebol. Nos torneios escolares, cansamos de ver pais e mães pressionando técnicos com a famosa postura do 'aqui só joga filho de diretor', ou atirando o peso da responsabilidade sobre o próprio garoto, dizendo por todos os cantos que 'meu filho é craque, só precisa de uma chance'. Ou então famílias humildes do interior abrindo mão de tudo para se 'dedicar' a construir à força uma carreira para o menino bom de bola, que na visão deles será a salvação financeira contra a exclusão social. Ou seja, nos dois casos, ao mesmo tempo em que tentam produzir artificialmente uma necessidade, tiram do garoto o que ele provavelmente tem de melhor, o prazer de jogar bola. Esse menino certamente nunca chegará a uma peneira.

Carles: Pois é, você confirma a minha tese do QI. Necessário não só para se fazer notar na peneira, mas para chegar a ela. Por aqui, todos os meninos, a princípio, dispõem (ou dispunham até faz alguns anos) de oportunidades mais ou menos equivalentes. Quem gosta de jogar futebol entra no time da escola desde bem pequeno. Quase todas as escolas têm instalações próprias ou municipais em que treinam, recebem aulas práticas, disputam torneios de ligas regionais. Isso, seja escola pública ou privada, de capital e interior, de zona classe média ou proletária. Os meninos são observados por olheiros que fazem anotações e relatórios. Eu mesmo fui abordado por um técnico do Valencia na saída da escola do meu filho quando ele tinha nove ou dez anos. O problema é que as estruturas estão mudando, existe um jogo de interesses cada vez maior, uma mercantilização que começa já nas idades mais tenras. Surgem clubes caros especializados na preparação, com a grife de algum jogador aposentado ou não que só aparece uma vez ao ano para a festa de inauguração. Dos representantes tubarões nem falamos. Acabam sendo esquemas inacessíveis para uma família que só conta com muita boa vontade e um potencial craque imberbe. Ou então depender de gente como Samuel Eto'o, que montou um esquema teoricamente para ajudar os garotos mais carentes de Camarões, trazendo-os para os grandes centros. Alguns deles já estão chegando ao time de cima do Barça. Mas são casos esporádicos e ainda raros.

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Edu: Pensemos então no que é possível fazer à margem dos tubarões, porque com esses ninguém quer se meter antes do tempo. E há vida além deles. Imagino que para os pais que detectem algum talento em seus filhos, o melhor caminho seja deixar a coisa andar da forma mais natural possível, para que o garoto não fique, antes mesmo de chegar à adolescência, com aversão a um mundo que tem vários ingredientes de perversidade competitiva. Se o garoto seguir gostando do que faz e confirmar seus talentos, muito que bem, mas é perfeitamente normal que, mesmo sendo um bom jogador, ele se decida por outro caminho, priorize os estudos, sua vida pessoal, as aventuras da juventude. Então, meu caro, certamente esse garoto não estará a fim de enfrentar os tubarões. Em outras palavras, enquanto houver algo de lúdico, valerá a pena insistir.

Carles: Nesse caso, detesto parecer repetitivo, mas só vejo uma alternativa prática que é a combinação, complemento ou apoio mútuo - como quiser chamar - entre desenvolvimento desse talento espontâneo prematuro e a educação mais essencial. Para que os garotos interessados no futebol não demonizem e não sejam surpreendidos pela perversidade do ambiente que os espera, acho que o vínculo direto do esporte com a escola é melhor solução. De quebra, devidamente escolarizados, esses garotos geniais com a bola no pé, podem reduzir drasticamente as chances de, mais cedo ou mais tarde, virarem presas fáceis desses tais tubarões.

 

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