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Diálogo intercontinental sobre futebol, com toques de política, economia e cultura.

A Europa na era dos pós-zagueiros

Edu: Que grande zagueiro surgiu na Europa nos últimos cinco ou dez anos? Responda rápido...

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Por Carles Martí (Espanha) e José Eduardo Carvalho (Brasil)
Atualização:

Carles: Lúcio, Juan, Thiago Silva...

Edu: Varanne.

Carles: Uma promessa.

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Edu: Quem mais? Chiellini? Kompany?

Carles: Piqué, Hummels, Vidic, Ramos...

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Edu: Hummm. Ainda prefiro Varanne, mesmo sendo uma promessa. Até gostaria de ter Hummels ou Ramos no meu time, mas sempre viveria em situação de risco. A verdade é que os grandes clubes da Europa já não produzem zagueiros como antes, sendo que o lado bom dessa história é que todos estão priorizando atacantes e meio-campistas. É um paradoxo que Thiago Silva e David Luiz façam tanto sucesso no continente que, historicamente, mais fabricou zagueiros de ofício.

Carles: Originalmente, Ramos é lateral do tipo "carrilero". Hummels, meiocampista. Se prestarmos atenção no outro lado de espelho, digno de Lewis Carrol, Dunga ou Scolari, o Brasil deixou de produzir meio-campistas brilhantes, começa a amargar uma carência de laterais e os atacantes seguem sendo jogadores valorizados, mas acostumados a esquemas táticos de alguma forma, defasados. Parece que ultimamente a vocação do futebol pentacampão especializou-se em produzir zagueiros centrais, quase indiscutíveis e espalhados por todo o planeta. Tem dois pontos que fazem parte de mais uma das minhas teorias. O Brasil passou a oferecer esportistas com biotipos mais altos, potentes e, apesar de os zagueiros centrais fazerem parte do jogo coletivo, seguem sendo peças um pouco mais independentes, de intervenções eventuais, e podem se permitir estar alheias aos esquemas naturais de construção de jogo. A Europa do fim do século passado recebeu uma injeção de modernismo em suas infraestruturas, incluindo as poliesportivas que ajudou na preparação de atletas desde a mais tenra infância. No caso do futebol isso permitiu requintar a preparação técnica e o seu refinamento. Os meninos passaram a escolher papéis alternativos no jogo. Preferiram divertir-se a ser stoppers. Querem bater falta, driblar e construir jogo.

Edu: À parte do que o Brasil possa oferecer - e voltaremos a esse assunto -, tem um outro componente que considero revigorante no futebol de hoje. Os técnicos (exclua Dunga e Felipão desse rol, por favor!) estão exigindo cada vez mais que os zagueiros saibam jogar bola, tenham habilidade para o passe, não se limitem a ser rebatedores. Acabamos de citar alguns que se destacam por isso - Hummels, David, Thiago e Piqué. Dois zagueiros muito badalados na Inglaterra, ambos já foram eleitos jogadores do ano na Premier, têm uma dificuldade brutal em sair jogando, embora tenham grande controle da área e  ótimo posicionamento no jogo aéreo, Vincent Kompany e Nemanja Vidic. Outra coisa: no 'um contra um', fracassam rotundamente. Mesmo Varanne, excelente no mano a mano, tem dificuldade na saída de bola. Todos esses não resistem a uma comparação com Franco Baresi ou Laurent Blanc, para citar só uma geração anterior.

Carles: Bom, a questão do Brasil usei um pouco como contraponto para tentar entender essa inversão de valores. Varanne sobretudo peca por falta de experiência. No último derbi contra o Barça, que o Madrid ganhou por 2 a 1, desencadeando a crise de confiança do adversário e consagrando Varanne como melhor em campo, pouca gente se lembra que, no gol de empate, o garoto cometeu um erro infantil, com a bola dominada perto da sua linha de fundo e de costas para o campo, devolveu para dentro da sua área, algo que um zagueiro de várzea sabe que não deve fazer, e acabou propiciando o gol de empate de Messi. A grande partida que fez apagou aquele erro. Cansei de ver zagueiros consagrados em determinados esquemas táticos fracassarem rotundamente quando mudaram de clube, de esquema ou técnico. Dos quatro que você citou, Hummels e Piqué, principalmente durante a última temporada, amargaram situações de quase ridículo quando seus times não bloquearam o suficiente no meio ou perderam o domínio de bola. Eles foram treinados para jogar lá trás, mas não para serem os velhos rebatedores que ainda estão no ideário de boa parte de treinadores na ativa. Os outros dois, a dupla titular da zaga brasileira, de personalidades e estilos completamente diferentes, trazem consigo uma tradição de amplo domínio do jogo, responsabilidade que, de já faz muitos anos para cá, os times brasileiros foram retirando dos meios campistas e, desde um pouco menos de tempo, vaisendo tirado dos laterais e/ou alas. É uma provável causa de um redirecionamento do protagonismo especial para essa demarcação. A prova é o corolário de craques brasileiros na posição.

Edu: Considero importante o Brasil ter evoluído nessas posições. Na verdade, o Brasil ajudou de alguma forma os zagueiros europeus a subirem de escalão, por isso talvez sejam tão valorizados hoje em dia por aí. Pode reparar que muitos clubes importantes têm hoje gravíssimos problemas na zaga. Poderíamos falar só de Barça e Bayern, que obrigaram jogadores a mudarem de posição (Boateng e Mascherano), mas há muitos outros com o mesmo problema e os mais graves são os italianos, uma escola tradicionalíssima de zagueiros. Veja como estão hoje Milan e Inter. Dá pena. Por outro lado, o fato de vivermos por aqui uma crise de produção de meio-campistas e de laterais não tem nada a ver com o excesso de zagueiros. É uma crise preocupante, mas não é inconsciente - temos pleno conhecimento do fato lamentável. E por aqui também os garotos ainda querem fazer gols, driblar e bater faltas. Só que está difícil de surgir um Rivellino.

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Carles: Inter e Milan dão pena de cabo a rabo. Sei que tem esses garotos aí também, mas a triste realiade é o que o mercado já não tem demandado esse perfil. Continuo achando que a produção de grandes zagueiros, sim, está relacionada com a concentração do jogo por lá na maioria dos times brasileiros. Ultimamente tudo acontece no ataque e, portanto, na defesa. O meio de campo ficou relegado a uma eventual zona de trânsito por circunstâncias físicas. O talento continua existindo, a estatura aumentou e os centros compradores já não buscam tanto criadores de jogo, tradicionalmente onerosos. Isso vira um círculo vicioso, a molecada se espelha nesses novos modelos. A lista de zagueiros brasileiros pelo planeta futebol é interminável...

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Edu: Não vejo a molecada se espelhando tanto em zagueiros, Carlão, sinceramente. E, se acontecer, é perfeitamente natural, porque são cada vez mais candidatos a ídolos. O que considero, neste momento, é que o Brasil entrou num processo de se fazer respeitar internacionalmente nesse quesito, mas com o ingrediente mais importante: o zagueiro tem que saber jogar. É um modelo de pós-zagueiro.

Carles: Ou seja que, no final, o Pep terá razão: Mascherano é o novo modelo de zagueiro, o último dos moicanos, o encarregado de apagar o incêndio na última linha, capaz de antecipar a maioria das jogadas nas raras vezes em que o time perde a bola e rápido o suficiente para fazer diagonais de cobertura? É esse o pós-zagueiro? Talvez não, mas todas as zonas de combate foram adiantadas. Possivelmente o futebol já não pode se dar ao luxo de manter dois ou mais sujeitos durante uma hora do jogo  praticamente inúteis, esperando para intervir em meia dúzia de lances vitais.

Edu: Se Mascherano for padrão de pós-zagueiro, prefiro a volta do velho Luis Pereira...

Carles: Já que você não me responde, diga então quem representa melhor esse modelo de pós-zagueiro, considerando que os dois melhores do mundo, Thiago e David, são ainda modelos de zagueiros tradicionais. Sem negar a grande versatilidade de ambos e o bom tratamento de bola.

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Edu: Acho que o pós-zagueiro não é necessariamente uma revolução, mas é um avanço. Thiago e David estão um degrau acima de Lúcio, como Hummels está adiante dos zagueiros clássicos da Alemanha. Fazem o que os antigos zagueiros faziam e algo mais. Nem acho, por exemplo, que David Luiz seja um dos melhores do mundo, mas sem dúvida acrescenta algo à posição. Só isso. Não é uma ruptura, é uma pequena e saudável evolução que não vejo em Mascherano, um jogador que, no máximo, sabe se virar dentro de uma improvisação, não mais que isso.

Carles: Pois é, Thiago Silva é consenso de melhor zagueiro do mundo, mas é mais convencional que o criticado David Luiz, que se aproxima mais da versatilidade requerida para o futuro. Por outro lado, provavelmente, el jefecito não seja lembrado como um zagueiro memorável, mas seu uso emergencial na posição possa até ser considerado um ponto de  inflexão conceitual. Lembre-se que um dia o esporte já fez o caminho inverso e riu de que os times durante décadas jogavam só com dois zagueiros, passou-se a jogar com três e um dia incorporou-se o quarto zagueiro. E, então, foi esse o modelo considerado como do futebol moderno.

Edu: A ideia de um zagueiro todo-terreno é estimulante, mas se Mascherano for ponto de inflexão de alguma coisa, o futebol estará perdido.

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