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Diálogo intercontinental sobre futebol, com toques de política, economia e cultura.

A Champions League quer virar Brasileirão

Edu: Está cada vez mais difícil falar da Liga Espanhola diante da maioria dos jogos em que os pequenos não conseguem nem fazer cócegas aos grandes. Sobram os clássicos e nada mais.

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Por Carles Martí (Espanha) e José Eduardo Carvalho (Brasil)
Atualização:

Carles: Tranquilo, vem aí a Liga Europeia. Tudo isso é parte de um processo interessado para desvalorizar do futebol local. É minha tese e já falei sobre isso aqui várias vezes, algo similar ao que já fizeram com os torneios regionais no Brasil. Você ainda vai me dar razão, talvez quando eu for visitar você no seu asilo cinco estrelas. E vou dizer mais, os espectadores, os tais torcedores sem fronteiras, estão encantados. Alguns, inocentes, torcem e compram a camisa do time que pertence a um magnata na Europa e que, muitas vezes, é o responsável pelas penúrias do seu povo.

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Edu: Não é assim nos outros países, nem mesmo na Itália. O Newcastle e o Genoa nunca vão acabar. O Almeria vai? O Granada?

Carles: Quem sabe? Nada me garante que o Newcastle não acabe ou mesmo vire uma franquia. A tradição e os vínculos populares já não garantem nada, diante do acosso das grandes fortunas que estão comprando até fósseis de dinossauros para colocar no saguão de casa. Provavelmente alguns pareçamos um tanto radicais na defesa das questões das raízes, mas é o último dos valores que garantem uma mínima autonomia de pensamento. Aqui no coto do nosso mais longevo ditador, tem muita gente convencida de que o melhor é ser "una, grande y libre" do que sermos muitos, diversos, plurais e, por isso mesmo, livres de verdade.

Edu: Dá para entender plenamente essa sua revolta, mas se a gente trouxer sempre esse tipo de discussão para o terreno de jogo, o futebol será tão chato como muitas outras atividades desse nosso tempo nada criativo. Prefiro tentar um outro ponto: considerando um Milan-Genoa, muito mais acirrado, com o pequeno colocando o grande em apuros, parece bem mais interessante que o Almeria.

Carles: O mais triste é que tanto nos jogos do Barça, do Real Madrid e do Atlético, os sparrings como o Almeria parecem resistir bravamente durante uns 20 minutos. A partir daí tem uma expulsão, uma jogada pontual para justificar a desistência de resistir à maior força do grande. Isso acaba se estendendo à arquibancada ou para a frente da TV. O torcedor, cansado de que seu time não mostre a mais mínima ilusão, sente-se como um idiota e prefere acompanhar um grande que possa competir. Contra o grande de outra metrópole, claro. O futebol é um planeta sim, mas feito de povoados e  cada um com a suas peculiaridades, essa é a graça.

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Edu: Às vezes, fica difícil mesmo ver tanta influência externa, assim de uma forma calculista, racional. Porque, de verdade, não existe desse jeito tão explícito. O futebol é muito mais terra de ninguém do que se possa imaginar. É claro que uns poucos se aproveitam, mas não conseguem sobreviver por muito tempo porque o meio é muito volátil e os códigos se encarregam de expulsar muitos dos interesses políticos.

Carles: Eu não vejo assim. Não só não é tão volátil, como às vezes é até mais intenso, pela fragilidade crítica do meio, porque estrategicamente o futebol, com seu calado popular, é um instrumento de domínio muito potente. A influência negativa do contexto político, pelo menos aqui, é rapidamente absorvida pelo futebol, que pode até parecer que está protegido e isolado por uma redoma (o que seria pior ainda), com sistema próprio de governança, mas às vezes inclusive se antecipa a todo resto, como se fosse um laboratório de testes. Olha, a cambada que dirige o futebol por aqui sempre se moveu por interesses de pequenos grupos poderosos, qualquer que fosse o governo. Mas é mais descarado ainda quando o poder está claramente em mãos neoliberais, como o atual. Nessas situações, é mais difícil manter a resistência às políticas de elitização e de arrecadação usando espetáculos claramente populares. O atual governo, por omissão ou consentimento, está totalmente entregue à causa dos grandes capitais, mais até do que durante os governos Aznar. Josemari teve a "honra" de plantar toda o dejeto que agora está brotando, mas que, enquanto ele governava, não era tão notável já que todavia prevalecia certa consciência socializada, produto da opressão coletiva da ditadura e dos fantasmas da pobreza do passado, claro.

Edu: É impossível negar que a cambada exista ou que não tente influenciar. Eles existem, influenciam e lucram com isso, mas é uma atividade paralela, como um mercado negro do qual o torcedor não participa, apesar de ser usado como gaiato. O torcedor do Genoa e do Depor na grossa maioria das vezes não faz esse link, ou por incapacidade ou por falta de interesse. Ele vê o jogo, é passional. O torcedor é muita gente, Carlão, centenas de milhares. Não dá para manipular todo mundo, nem os grandes líderes fascistas da história com milhares de armas e exércitos conseguiram isso por tanto tempo. Tem mais torcedores no mundo do que eleitores. Talvez o que você queira dizer com consciência é que se todo mundo fosse consciente, ou a maioria, não existiria futebol, algo que nos primeiros tempos era comum uma parte da esquerda defender - e a direita também. Era uma visão terrível preconceituosa e cruel, mas durou pouco essa boçalidade. Bertold Brecht, por exemplo, um esteio incontestável da esquerda, entendeu que o futebol é uma forma de participação mesmo que seja a princípio uma participação à margem da política formal, o que, no fundo, de fato é, embora seja uma atividade que contenha intenções políticas no sentido mais amplo, mais além do proselitismo político-partidário.

Carles: Olha, essa conversa vai embora e está ficando tarde, seguimos amanhã?

Edu: Até lá.

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