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Diálogo intercontinental sobre futebol, com toques de política, economia e cultura.

A alma brasileira da mais mestiça das seleções

OS 32 DA COPA (32)

Por Carles Martí (Espanha) e José Eduardo Carvalho (Brasil)
Atualização:

Carles: Não sabia se começar falando de coxinhas ou acarajés, de oportunistas ou inconscientes, ou reclamar das manchetes sobre as greves e manifestações que nos chegam acompanhadas da palavra "caos" no lugar de "legítimas". Tinha também o problema de, ao fazer qualquer consideração despretensiosa, ser condenado ao fogo eterno como traidor de uma causa ou partidário da outra. Diante de tudo isso, preferi passar a palavra a alguém tão ibérico e tão brasileiro como eu. Nascida em Vila Isabel, no Rio, ela, como eu, carrega indisfarçáveis cicatrizes no nome e essa dualidade (ou ambiguidade) que tanto nos atormenta aos cidadãos híbridos. É a escritora Nélida Piñón, que no seu artigo "La ilusión brasileña" para "El País Semanal" de 8 de janeiro, descreve a alma brasileira como sendo "de raiz Ibérica e destino mestiço, embevecida pelo poder, heroica, marinheira e sensual, com inclinação à intriga novelesca e ao lirismo". Você sabe que eu prefiro quebrar o adjetivo "brasileiro/a" em dezenas de outros. Mesmo assim, não me parece um mau começo para o nosso papo sobre o anfitrião da 20ª Copa do Mundo. Intriga novelesca e lirismo, diz ela. Alguma insinuação sobre fuga da realidade ou tendência à falta de objetividade?

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Edu: Você sabe que, se começássemos a falar sobre futebol como algo que sugere minimamente fuga da realidade, terminaríamos a conversa por aqui e as relações diplomáticas estariam cortadas. Logo, não é o caso. O Brasil passou por tantas desventuras e atrocidades, muitas das quais você sentiu na pele, que, hoje, em tempos muito mais férteis e cômodos, parte das novas gerações e os rançosos reacionários das gerações passadas desrespeitam sua própria memória e não sabem reconhecer as conquistas da sociedade - nem a maior de todas, a liberdade. Claro, o futebol é uma atividade de raízes 100% sociais, responsável aqui por construir um patrimônio cultural que virou referência internacional, fator de estímulo para jovens e crianças, elemento aglutinador e de congraçamento. Pois justamente no momento em que o país tem o privilégio de comandar esse processo, os reacionários saem da tumba com sua gosma cinzenta e derrotista. Só não sabem que o colorido país da mestiçagem, da polifonia e do lirismo (obrigado Nélida) está sempre pronto para se sobrepor brandindo o lema com o qual vocês têm muita intimidade: 'Não passarão!'

Carles: Essa frase eu conheço. Na história original sinto dizer que "passaram", o que não significa que tivessem razão. Bom, ao menos eu, não falava de futebol, então não tem cisma. Mas como é o nosso assunto obrigatório, me interessa saber se vocês acham que essa seleção representa a tal alma descrita por Nélida. Certamente não é a melhor Seleção Brasileira de todos os tempos, mas é um bom time, digno e cheio de recursos, com todas as possibilidades quanto a conquistas. Li algum jornalista brasileiro acusando a grande estrela, quem deveria marcar a diferença, Neymar, de ter readquirido seus piores costumes, "mostrando-se individualista e alheio ao jogo coletivo, algo que parecia ter corrigido em Barcelona". Por circunstâncias ou opção, esse é um time objetivo e vertical, bem europeu, eu exageraria. Não seria, portanto, interessante recuperar o Neymar mais moleque no bom sentido? Nem que seja temporariamente para essa grande festa?

Edu: Poucas seleções brasileiras foram tão representativas das nossas etnias e camadas sociais como esta. Entre os titulares, há oito negros ou mestiços, no grupo todo, são 15. Representam também a diversidade regional do país-continente e boa parte saiu de contextos de exclusão social - sem que isso resulte no vitimismo com que essas histórias são retratadas em muitos cantos da Europa, berço da civilização contemporânea. Quer alma mais representativa do que esta? Ok, hoje são rapazes ricos, frequentadores da elite midiática mundial, mas a ideia que a maioria deles transmite é de um sincero vínculo com suas raízes. Se são os melhores em campo? Não necessariamente, tanto que o Brasil hoje é visto como favorito muito mais por jogar em casa do que por questões táticas ou habilidades extraterrestres. Futebol-moleque? Nem sempre é possível congregar vários moleques, no bom sentido, ainda mais com o atual comando técnico. Neymar carrega o peso de ser o ator principal, o que pode ser demasiado para seus 22 anos, mas esse tipo de pressão é componente do jogo, ou seja, falarão muito dele, bobagens e verdades, mas corrigir algum detalhe técnico, readequar o estilo dele para esta Copa, temo que já seja tarde demais.

Carles: Bom, Zé, eu me referia ao estilo de jogo do conjunto e do risco, como espectador, de não poder desfrutar do inesperado. Também é verdade que, cada vez mais, conceitos como competir e brilhar teimam em se distanciar. Especialmente no caso de conseguir o título tão desejado, os detalhes da conquista acabarão perdendo toda a importância. A Seleção do Brasil já é a terceira colocada no ranking e, com o apoio da torcida, enfrenta a correta Croácia que é a 18ª, e os irregulares combinados do México, 20ª, e Camarões, 56ª. Nenhum brasileiro, seja uma estrela rutilante de 22 anos como Neymar ou um veterano questionado e trintão como o goleiro Julio César, é capaz de temer uma surpresa, pelo menos na primeira fase, certo?

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Edu: Nunca se sabe, principalmente na estreia, que pode definir os caminhos para onde esse time vai. Eu também me referia ao estilo da Seleção Brasileira, que é hoje, a bem dizer, um time de operários, bons operários, qualificadíssimos, com um quase garoto entre eles que está bem acima, mas que não tem ainda cacife para ser um líder espiritual do grupo. Provavelmente nunca veremos este time brilhar por ser insinuante ou criativo, o que não exclui outras características brasileiras. No máximo, será um bloco muito competitivo como já mostrou que pode ser, com um ou outro diferencial - o inesperado que você e tanta gente pede - que pode vir de Neymar, Oscar ou William. E olhe lá. Até porque tem um treinador, Felipão, que nunca privilegia essas questões, a ponto de quase sufocar a alma brasileira. Por sinal, passa a maior parte do tempo evocando situações extracampo para incendiar seus rapazes. Mesmo assim deve passar pela primeira fase e aí veremos a real maturidade dessa equipe que não é jovem - tem a quinta maior média de idade de todas as 32 seleções.

Carles: Com toda essa história de previsões e probabilidades, tive a pachorra de entrar num desses simuladores online e experimentei três alternativas. Em duas delas, o Brasil chegava à final e ganhava. Na terceira prova, a Espanha passava como segundo do seu grupo, perdia em oitavos para o Brasil que, por sua vez, caia em quartas diante da Itália que chegava à final depois de derrotar a Alemanha numa das semifinais. Na outra, o Uruguai perdia para a Argentina que era a campeã. Mais do que improvável que o Brasil com esse time sobretudo competitivo, com dois dos melhores centrais do mundo, Thiago Silva e David Luiz, e artilheiros implacáveis, deixe escapar essa taça. Assim mesmo, se eu fosse Del Bosque, Löw, Sabella ou Prandelli, preferiria enfrentar a Seleção Brasileira - só se fosse estritamente necessário - entre oitavas e semifinais, nunca na final. Concorda?

Edu: É o que ninguém quer, porque, uma vez lá, será difícil segurar o entusiasmo.  Mas são seis longos jogos até a final, uma eternidade quando o assunto é futebol.

Carles: Duas coisas mais: a primeira quanto à estreia em São Paulo. Há quem opine que é como se a seleção espanhola estreasse numa Copa aqui, jogando em San Mamés, por exemplo. Ou será que é muito diferente jogar no Morumbi ou em Itaquera?

Edu: Será diferente, esteja certo disso. Será um público mais condicionado, já no clima da Copa, e que se preparou para este momento. Mas é claro que o time precisa ajudar um pouquinho. Ninguém vai querer aplaudir uma derrota.

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Carles: A segunda e última, já que ainda não falamos do setor do time que pode justamente definir a tal alma, que gere um jogo fluído e criativo ou mesquinho e amarrado. A menina dos olhos de Felipão, o meio campo: Luis Gustavo, Fernandinho, Paulinho, Hernanes, Willian, Oscar e Ramires. Não dá para reclamar de falta de opções ou diversidade. Apesar dos saudosistas que pudessem preferir Clodoaldos, Gersons, Rivelinos, Falcões e Sócrates. Definitivamente, os tempos são outros, inclusive para o pentacampeão do mundo, não?

Edu: Evidente que são outros, ninguém é maluco de enxergar aí nessa turma um supercraque dessa estirpe que você e todo mundo sempre vai lembrar com nostalgia. Mas há outros componentes do perfil brasileiro muito bem representados por esse pessoal que, insisto, é bastante trabalhador e tem um talento até que razoável. Lembre-se de que o Brasil já foi campeão do mundo com Dunga, Zinho e Mauro Silva, enquanto Sócrates e Falcão ficaram em nossa memória por outras razões, talvez mais nobres. Seria o argumento preferido do senhor Scolari para defender sua moçada e seu estilo de comando.

 

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